Rápido, e técnicamente mau

Rápido, e técnicamente mau

Todos os meus artigos apontam a ajudar a melhorar a compreensão técnica de quem os lê, no entanto, encontram-se sempre envoltos por um facto difícil de evitar, o de existirem pilotos incrivelmente rápidos, mas tecnicamente maus.
 
Com esse facto em mente, muitos perguntam-se porque devemos tentar melhorar a nossa técnica em primeiro lugar, uma dúvida de certa forma justa, mas demasiado simplista.
 
Hoje vamos falar exatamente sobre este tópico, e retirar qualquer duvida que possa existir sobre esta questão que infelizmente, afasta muitos da ideia de investirem em si próprios para melhorarem a sua condução.

CAIR NÃO É BARÓMETRO

Um erro típico na definição de pilotos tecnicamente maus, é a de que técnica deficiente promove muitas quedas, um erro de analise justo, mas igualmente enganador.
 
Isto assim o é porque cair, ainda que seja indicativo de que algo está mal, não têm obrigatoriamente de ser sinónimo de que o que têm de mudar é a técnica do piloto.
 
Marc Marquez, sendo um atleta com muitas quedas a seu nome no desporto rei da velocidade em duas rodas, é um ótimo exemplo, porque apesar do seu elevado registo de encontros com o alcatrão, é igualmente um dos pilotos com a melhor capacidade técnica do pelotão.
 
Assim, as suas quedas não podem ser diretamente marcadas como erros de abordagem técnica, mas ao invés, talvez por um desejo potencialmente excessivo de querer encontrar limites, ou por uma abordagem mental demasiado agressiva.



Marquez é decididamente um daqueles pilotos em que é difícil analisar fotos, pois nunca se sabe bem se o que se vai seguir é uma queda, ou uma recuperação do outro mundo. Imagem de motorsport.com


Falei do exemplo de Marquez, mas a nível lúdico, todos conhecemos pelo menos uma pessoa que é incrivelmente rápida, tecnicamente sã, mas que é igualmente um dos que mais quedas têm a seu nome.
 
Dito isto, se quedas em demasia não são obrigatoriamente sinal de técnica fraca, falta de quedas também não é sinónimo de técnica eximia.
 
Desde pilotos que não gostam de arriscar, ou que escolhem sistematicamente percursos mais permissivos onde erros são mais facilmente perdoados, ou que por uma inteligente escolha de mota vêm peso e tecnologia a compensar as suas falhas, muitos conseguem fazer uma vida fora de estrada com poucas quedas de relevo.
 
Isso pode ser sinónimo de inteligência ou conservadorismo, no entanto, os anos de experiência acumulada sem quedas, não significam diretamente que esses pilotos tenham desenvolvido uma técnica de excelência.

HÁ MAU E MAU

Aceitando que quedas isoladas não devem ser método de analise, muito escolhem utilizar outro padrão, o de quão rápido alguém é, no entanto, velocidade também não deve ser a forma de distinguir quem é tecnicamente bom, de quem não é.
 
Assim, e antes de mais, devemos clarificar que quando falamos em pilotos rápidos ainda que tecnicamente maus, temos primeiramente de definir o quão maus eles são, afinal, as palavras importam, e com isso, também a sua definição.
 
Essa definição torna-se ainda mais importante quando por vezes falamos em atletas de topo, com campeonatos nacionais, internacionais, e mundiais a seu nome, forçando a que se tenha de ser muito preciso nas definições que usamos quando apontamos dedos.



É quase criminoso apontar o dedo a James Stewart, provavelmente um dos seres humanos mais rápidos em cima de uma mota de fora de estrada que alguma vez existiu, no entanto, pelos padrões atuais, é fácil ver dois erros técnicos distintos na posição dos seus pés nesta foto. Imagem livemotocross.com


Com isso em mente, vamos para o efeito deste artigo definir “tecnicamente mau” como a antítese de tecnicamente consistente, ou no mínimo, como sendo alguém com erros recorrentes e persistentes.
 
Essa definição leva-nos a ter de aceitar que apesar de todos os erros que um piloto possa ter, vai também ter bastantes pontos onde é exímio, o que ao mais alto nível, permite a muitos atingir as velocidades e títulos pelos quais são conhecidos.
 
Aceitando esta premissa, e as implicações da mesma, temos de manter em mente que técnica em duas rodas não pára de evoluir, o que obriga a que tenhamos de fazer as nossas avaliações técnicas de uma forma contemporânea, mas ainda assim inserida no percurso evolutivo que nos permitiu chegar onde estamos hoje.
 
Se, por exemplo, pudéssemos por o Airton Sena a conduzir um Formula 1 atual, estou certo que ele continuaria a ser o piloto exímio que todos conhecemos, mas ainda assim, muito provavelmente iria apresentar erros técnicos relativamente aos padrões de condução de hoje em dia.
 
Isso não quer no entanto dizer que pilotos de outras gerações não possam ou não consigam ser tecnicamente atuais, Valentino Rossi é um claro exemplo de alguém que ao longo da sua carreira constantemente atualizou a sua técnica ano após ano, mas exemplos como o dele são extremamente raros.



Rossi, não só ano após ano adaptou e modificou a sua técnica para se manter atual, como já com muitos anos de carreira continuou a desenvolver técnicas que todos os outros pilotos acabaram por copiar, como o Dr. Dangle, a técnica de tirar a perna na travagem para curvas. Imagem redbull.com


A maioria dos pilotos, principalmente os que só têm a oportunidade de aprender técnicas diferentes tarde, tendem a aplicar uma outra abordagem, uma que se torna a escolha de eleição da grande parte daqueles que já acumularam muita experiência, dentro, ou fora da pista.
 
Essa escolha passa então por se deixarem exatamente como estão, principalmente se forem consistentemente rápidos, e tiverem poucas quedas de registo.
 
Isso não significa no entanto que estes pilotos sejam obrigatoriamente maus por isso, significa somente que de acordo com os padrões atuais, eles vão estar a apresentar pouca consistência, o que faz deles numa leitura contêmporanea, tecnicamente maus.
 
Somos assim forcados a aceitar que sendo técnica a promover velocidade, os métodos utilizados por alguns podem ser simplesmente incorretos por estarem desatualizados, tornando a definição de bom ou mau uma simplesmente temporal.

É TUDO GERACIONAL

Eli Tomac, por exemplo, é indiscutivelmente um dos grandes de todos os tempos do motocross e supercross mundial, mas isso não significa que seja livre de erros sensivelmente repetitivos.
 
Por definição, o posicionamento e trabalho dos seus pés nos comandos, ainda que já alterado relativamente aos seus primeiros anos competitivos, é relativamente preguiçoso, ou no mínimo, não tão ativo e preciso como as técnicas mais recentes requerem.
 
Isso faz com que o posicionamento dos seus joelhos seja normalmente demasiado frontal, o que regularmente lhe mete demasiado peso no guiador, e consequentemente, na roda da frente.
 
Agora se isto assim o é, a pergunta de como é que ele consegue ser tão rápido torna-se clara, e a resposta, também.
 
Por ter uma capacidade física em termos de resistência muito acima da média, e um trabalho técnico de tronco tão sólido, este atleta absolutamente único, consegue compensar os erros dos seus membros inferiores, com o dos superiores.
 
Para muitos, esta explicação de que podemos compensar uma parte do corpo com a outra é a desculpa perfeita para evitar trabalhar técnica na generalidade, mais uma vez, ver as coisas na sua globalidade volta a ser fundamental.



Nesta foto é possível ver Tomac a cometer um erro técnico comum com cada um dos seus pés. Ainda assim, esses erros não o impedem de ser consistentemente rápido, e um dos melhores pilotos de todos os tempos, pois têm um trabalho de tronco irrepreensível. Imagem racerxonline.com


Este erro sensivelmente sistemático de Tomac que o força a por demasiado peso no guiador, é um erro que tipicamente faz a maioria dos pilotos sofrer de arm pump, um problema que têm acompanhando Eli durante toda a sua carreira.
 
Por outro lado, temos a questão geracional.
 
Hoje em dia, e olhando para o último campeonato de AMA de Outdoors como exemplo, Eli deu por si em constantes batalhas com Chase Sexton, um jovem que com menos capacidade física mas com uma técnica geral mais refinada, foi o único a sistematicamente conseguir rolar par a par, e muitas vez mais rápido do que Tomac.
 
Apontei o dedo a este deus do fora de estrada, mas a lista de pilotos que vão ficar na história do motocross, supercross, rally raid, e enduro que têm pormenores técnicos divinais acompanhados de erros que hoje em dia se consideram até certo ponto básicos, é imensa, e típica de técnicas que estão a bater de frente com a evolução natural das novas gerações.

VENCER DEMÓNIOS

Mantendo-nos no tópico da perspetiva, quem dera á larga maioria de nós poder ter a capacidade técnica de pilotos como Tomac, com erros e tudo, e nesse sonho, não estaríamos totalmente errados.
 
Afinal, erros em moldes competitivos têm uma relevância completamente diferente da que têm no mundo lúdico onde a maioria de nós vive, ainda assim, isso não deve ser justificativo para um relaxe formativo da nossa parte.
 
Se por um lado ninguém aprende nada hoje em dia com conhecimento baseado somente em informação de 1950, por exemplo, por outro, para o nosso corpo, uma queda a 50km/h é igual a competir por um campeonato do mundo como é num passeio domingueiro.
 
Poderia ainda ser argumentado que em competição, entre treinos e provas, situações de risco extremo acontecem mais regularmente, o que significa que a probabilidade de nós em regime lúdico as encontrarmos é mais reduzida, mas ainda assim, existente.



Saltos, por exemplo, são uma realidade inevitável no motocross e supercross competitivo, e mesmo em enduro e rally raid. No entanto, em regimes lúdicos ou amadores, facilmente podemos evitar este tipo de risco, principalmente quando a nossa técnica assim o obriga. Imagem wired.com


Por outro lado, o nível técnico da larga maioria dos pilotos lúdicos e amadores, é regularmente inferior á de atletas de topo, por isso, situações de risco fora de competição, tendem a não necessitar de ser extremas para ser de risco elevado para o mais comum dos mortais.
 
Com isso em mente, se queremos deixar a realidade imitar o sonho e sozinhos melhorar tecnicamente copiando as características destes atletas de topo, devemos evitar simplesmente imita-los indiscriminadamente, algo que pode fácil e inadvertidamente levar-nos a também adquirir os seus erros.

Assim, devemos antes ir buscar a sua capacidade de memória curta, uma característica que é mais facilmente atingível, e menos passível de criar confusões.
 
Se situações de risco, potencialmente aumentadas por erros técnicos acontecem regularmente a nível competitivo, isso significa que os sustos também, e com eles a necessidade de seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
 
Todos nós já tivemos sustos fora de estrada, mas alguns, tenham resultado em acidentes ou não, deixam marcas emocionais que por vezes dificultam a capacidade de rapidamente voltarmos a enrolar o punho com confiança.
 
Por definição, ao estarmos mais tensos, temos tendência a fechamo-nos mais na mota, enrolando as costas e afastado o tronco do guiador, tal como tendemos a agarrarmo-nos mais com as mãos, ao invés de nos alongarmos na mota libertando a frente.
 
Esta inadvertida reação do nosso corpo dificulta o controlo da mota, o que em termos cerebrais funciona como uma confirmação de que algo não está bem e que temos razão para estar inseguros.
 
Este circulo vicioso pode ser complicado de quebrar, no entanto, todos estes atletas de topo, estão dotados de uma incrível característica que lhes permite vencer estes demónios.
 
Apesar de medo ser inerentemente humano, a sua gestão é passiva de ser trabalhada, e estes atletas gerem-no brilhantemente, conseguindo de uma forma virtualmente infalível, quase instantaneamente continuar a rolar ao seu melhor nível, mesmo após as mais assustadoras quedas.



Uma das razoes pelas quais treino mental é extremamente importante, é para se conseguir conquistar demónios, e se conseguir rapidamente voltar para cima da mota depois de uma queda ou lesão. Imagem racerxonline.com


Isso, em conjunto com uma postura mental focada, permite que a técnica deles, mesmo com possíveis erros, seja aplicada da melhor maneira que lhes é possível, dando ao seu cérebro uma normal resposta da mota, permitindo-lhes rapidamente arquivar a queda ou susto como uma probabilidade estatística do desporto.
 
Assim, não se deixem influenciar por resultados, campeonatos, ou velocidade, técnica mental e física é algo que todos devemos continuar sempre a aprender e treinar, pois isso, vai sempre melhorar a nossa segurança, consistência, e velocidade final, independentemente do nível que temos quando começamos o nosso percurso formativo.

QUEM DEVE APRENDER TÉCNICA?

A resposta a esta pergunta é relativamente clara, com um “absolutamente todos” a ser citado pelos mais puristas, onde eu próprio me incluo, no entanto, num mundo que se pinta de cinzento, ver as coisas a preto e branco gera fanatismos que pouco sinónimo são de evolução.
 
Assim, sou obrigado a aceitar que pilotos com carreiras feitas de forma empírica - ou com treinadores pouco focados em evolução técnica - não se queiram dar ao trabalho e risco de modificar a sua abordagem de condução quando já contam com muitos anos competitivos a sua nome.
 
Afinal, durante o tempo de transição entre a técnica antiga e a nova, todos encontramos um período de condução complicado, com o cérebro a ter dificuldade em escolher que abordagem aplicar.
 
Dessa forma, e quando existe muito dinheiro e responsabilidades na mesa, tal como carreiras restritivas em termos temporais, temos de aceitar que abraçar novas técnicas pode não ser para todos, ainda assim, estes exemplos não são comparáveis com a realidade da maioria dos amantes de fora de estrada lúdico e amador.



Auto avaliação não deve ser só feita sobre a nossa real capacidade técnica, mas também sobre os nossos objetivos, ambições, e reais necessidades. Sistema de autoavaliação BN EnduroCamp


Como já referimos no passado, temos então de fazer uma auto avaliação séria, e decidir se nos inserimos nesse grupo restrito de atletas de topo, ou se somos guerreiros de fim de semana, alguém que começou a andar na terra agora e ainda não desenvolveu maus hábitos, ou um piloto competitivo de meio de tabela que não consegue chegar mais longe, por exemplo.
 
Esta avaliação pessoal é importante porque as mais avançadas técnicas de condução não se prendem somente por levantar os cotovelos, ou meter o pé no sitio certo, antes pelo contrario, razão pela qual requerem um compromisso considerável, principalmente no inicio.
 
As mais avançadas técnicas de hoje em dia obrigam a compreender por que é que os gestos técnicos são necessários, como é que fisicamente a mota vai responder, qual o papel do nosso cérebro nas nossas tomadas de decisão, entre outros pontos que permitem compreender a fundo o porque, e não só o como.
 
Esta pequena grande diferença de abordagem pode parecer simples, mas ao trocarmos o como pelo porque, estamos drasticamente a aumentar a nossa segurança e capacidade de resolução de problemas, algo que têm o incrível efeito secundário de nos tornar consistentemente mais rápidos.
 
Assim, apesar de todos devermos estar continuamente a aprender e desenvolver técnica, num mundo onde tecnologia não para de evoluir, temos além de nos perguntarmos se devemos investir na nossa formação continua, considerar também se achamos lógico querer conduzir as motas mais atuais do mundo, com as técnicas do século passado.
 
 

Your riding buddy is trying to kill you!


1 comment

  • Herlander Aguiar

    Cair faz parte. Queiramos ou não. Algumas quedas são a exploração dos limites, algumas são azares, técnicas mal aplicadas ou ausência delas, outras são simplesmente tontices.
    Até os melhores dos melhores a certa altura têm que aprender, ou na ausência de uma, desenvolver técnicas para melhorar a condução, ou acompanhar a evolução mas motas. Para os guerreiros de fim de semana, como já referi anteriormente noutro post vosso ,o ideal seria terem logo um treino inicial para saberem as técnicas antecipadamente, e aplicar em diversas situações, antes do piloto automático tomar conta (modo sobrevivência), para aumentar a segurança, logo a confiança e o prazer de andar de mota. Pessoalmente, após uma ausência de aproximadamente12 anos longe as motos, decidi acabar com o logo jejum e adquiri uma 250 e tornar-me num guerreiro de fim de semana. Mas enquanto que antes apenas pensava na velocidade a todo o custo (e custou alguns ossos), agora o meu foco é a técnica, para já sem formação física (apenas com vídeos e este Blogue), mas um dia terei que fazer uma formação convosco, certamente que a evolução será significativa.
    Deixo mais uma vez os meus parabéns pelo post bem conseguido. É, como sempre, uma leitura agradável, clara e objetiva.
    Cumprimentos.

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