As espectativas das motas mágicas

As espectativas das motas mágicas

O marketing extremamente agressivo das marcas, tal como muitos, ainda que não todos os comerciais dos mais variados stands, gostam de passar a ideia de que basta comprar esta ou aquela mota para automaticamente nos tornarmos no filho ilegítimo do Pol Tarrés com o Ewan McGregor.
 
Apesar de na generalidade das situações, nós, como clientes, sabermos que o discurso usado não corresponde minimamente à realidade, o simples facto dessa mensagem nos ser repetidamente passada deixa marcas, quer queiramos, quer não.
 
Hoje, vamos falar do perigo dessas mensagens enganosas, e explicar porque é que abraçar a nossa falta de especialização e experiencia é mais vantajoso do que aceitar a falsa realidade de que a mota faz o piloto.
 

A MOTA MÁGICA

Não interessa de quem estamos a falar, de experientes pilotos profissionais a guerreiros de fim de semana, todos, de uma forma ou de outra, somos afetados pelo marketing extremamente agressivo de basicamente todas as marcas.
 
Se para os mais experientes qualquer frase ou imagem publicitaria é na sua maioria recebida com um sério grau de ceticismo, é no entanto impossível ficar totalmente indiferentes ao que está a ser publicitado.
 
Afinal, motas como a plataforma 790/890/901, por exemplo, apesar do seu grande porte e potência, provaram ter um equilibro de massas em andamento semelhante, ou mesmo melhor que várias motas mais pequenas, com o mesmo a poder ser dito da plataforma 12GS/GSA, entre outras.



Ver pilotos profissionais e experientes passar com motas de grande porte em alguns terrenos nunca deve ser significativo do que as motas conseguem fazer nas mãos de alguém menos experiente. Imageadvpulse.com


Agora, se essa realidade é suficiente para alimentar esperanças, o facto provado de que o seu porte mostra sempre um ar da sua graça em situações extremamente técnicas, ou numa queda, é o suficiente para gerar suspeitas quando isso é propositadamente esquecido em press releases e discursos de vendas.
 
Por isso, apesar da realidade do unicórnio de média a alta cilindrada tender a manter-se tão efémera como a mítica criatura com a qual partilha o nome, como comunidade, não deixamos de ser sonhadores, e por isso, de ficar sempre esperançosos quando noticias de uma nova mota aparecem no ar.
 
Porém, a diferença entre pilotos batidos e recém chegados ao desporto, é que quem já levantou muitas motas do chão, e já deu por si a sentir uma mota mudar as suas características assim que o terreno muda, tende a rapidamente descartar a ideia de unicórnios, por muito que em andamento e algumas situações especificas, algumas motas sejam verdadeiramente, mágicas.
 
Não quero com isto dizer que motas grandes, tenham elas muitas ou poucas capacidades para fora de estrada, sejam inerentemente más escolhas para a terra, antes pelo contrário, cada um sabe o uso que lhes vai dar e como tal, se esta ou aquela será a mota perfeita para si ou não.
 
O ponto importante é que temos como comunidade - e como pilotos individuais - de parar de acreditar que existem motas que vão automaticamente melhorar as nossas capacidades fora de estrada, quando na realidade, o único truque para esse fim, é aprender pela mão de instrutores certificados, e por muitas horas de trabalho pessoal em campo, algo totalmente independente da mota que se usa.



Formação certificada é uma mais valia para qualquer tipo de piloto em qualquer estado evolutivo. Até treinadores certificados e experientes tiram proveito de treinos com outros instrutores. Foto Enduro.nl


No entanto, e sendo um romântico por natureza, tenho de admitir que todos temos motas mágicas na nossa vida, mas porque elas nos enchem as medidas e cumprem as nossas necessidades e espectativas, e não porque um fabricante ou um comercial nos convenceu que “esta é a que te vai deixar fazer tudo”.
 
Por isso, temos de começar por ajustar essas mesmas espectativas logo desde a altura da compra da mota, escolhendo o melhor compromisso para as nossas reais necessidades e estado evolutivo, mantendo em mente que nem essa “escolha certa” vai fazer de ninguém automaticamente um piloto seguro e consistentemente bom.

O TRUQUE EXPLICADO

Depois de levarmos a primeira chapada da realidade no que diz respeito aos reais positivos e negativos da nossa mota, estamos agora preparados para a segunda, a da nossa real capacidade de a conduzir e tirar proveito das suas forças e fraquezas.
 
Apesar de não existirem motas inerentemente mágicas, existem sem dúvida motas mais permissivas que outras espalhadas por vários segmentos, com as de baixa cilindrada a destacarem-se com um dom sem precedentes; a capacidade de fazer parecer que qualquer um conduz bem.
 
Diz o povo que em terra de cego quem tem olho é rei, e neste caso, quem têm olho para escolher uma destas motas “mágicas”, rapidamente se torna rei e senhor das suas capacidades, no entanto, esse é exatamente o truque destas motas.
 
Um bom piloto, seja ele competitivo ou não, têm algumas características muito especificas, tal como conhecimento técnico, sensibilidade de leitura da mota e do terreno, mas acima de tudo, uma clara consciência das suas capacidades.
 
Isso significa que um bom piloto, apesar de ser passível de ter dias melhores e piores, é alguém que dotado uma autoavaliação sólida, sabe exatamente como atacar os mais diversos tipos de terreno, e como os navegar com cada tipo de mota.



Saber adaptar ritmos a diferentes tipos de motas e terrenos é uma das caracteristicas de um bom piloto. Imagem adventureriderradio.com 


Essa leitura da sua realidade dá-lhe a capacidade de ser seguro e regular no seu andamento até em dias emocionalmente mais complicados, tal como lhe dá o saber exato de quando está acima do seu limite, escolhendo como abordar o track, ou até mesmo se o deve fazer, fazendo assim dele inerentemente, bom.
 
Numa mota pequena e de fácil tato, a maioria dos pilotos, especialmente os lúdicos, rapidamente dão por si num mundo em que erros técnicos são perdoados pela engenharia moderna, e em que sustos são mais facilmente controláveis por puro poder físico.
 
Ainda que haja uma visível diferença de leveza entre esses e os bons pilotos, para muita gente, isso deve-se mais a uma diferença de estilo do que de qualidade pura, e é ai que este truque de magia se começa a tornar perigoso.
 
Se assumirmos uma curva a cada 100 metros, num dia de 200kms somos obrigados a fazer cerca de 2.000 curvas.
 
Aceitando esta premissa, sabemos que um piloto bom, por ser consistente, vai fazer todas essas curvas seguindo uma sequencia pré-definida que lhe permite eliminar erros supérfluos, o que aumenta a sua segurança e velocidade geral.
 
Essa abordagem é também o que lhe permite não usar mais energia do que precisa ao longo do dia, e ao contrario dos seu contrapartes, acabar o track basicamente sem historias de quase acidentes ou sustos.



Se precisas de paragens regulares para descansar estás a andar a um ritmo ou num tipo de terrenos em que não deves. Imagem adventurerideguide.com 


Por outro lado, aqueles que abordam as mesmas 2.000 curvas de forma inconsistente, ou cada uma á sua maneira, vêm a probabilidade de ter resultados diferentes em cada uma quase como uma garantia, algo que por definição impossibilita consistência, retirando-lhes diretamente o titulo e benesses típicas de um bom piloto.
 
Assim, torna-se importante aceitar que a mota pode fazer qualquer um parecer bom, mas que na realidade, parecer e ser são duas coisas muito distintas.
 
Com isso em mente, de forma a evitarmos sustos ou mesmo acidentes, em vez de nos agarrarmos ao facilitismo que algumas motas nos oferecem como meio de sustentar a nossa qualidade de condução, devemos antes aceitar essa permissibilidade como uma benesse a usar na nossa evolução técnica, uma que por si só não ensina nada a ninguém.

GRÃO A GRÃO

Já falei no passado do facto de como devemos aprender com a mota que temos, no entanto, para muitos, a sua realidade dita que necessitam de uma só mota que faça tudo, e isso, por conceito, impossibilita a escolha por uma “mota mágica”.
 
Assim, nem todos podem tomar partido do facilitismo que motas mais pequenas oferecem na evolução técnica de pilotos, no entanto, e mesmo para os que o podem fazer, o principio evolutivo mantém-se.
 
Esse principio assenta no simples facto de que independente dos truques que a nossa mota usa para nos dar a ideia de que sabemos conduzir, temos de aceitar o facto de que não sabemos o que não sabemos.



Exemplo de uma péssima posição corporal que “funciona” até certo ponto porque a mota permite, mas que está longe de promover segurança e controlo. Imagem adventuremotorcycle.com 


Usando uma crude mas eficaz analogia, por mais que alguém tenha acesso a dicionários, a um corretor automático, e até mesmo a um gestor de texto que modifique as frases que escreve, dificilmente poderá considerar-se um escritor por conseguir juntar umas frases que se traduzam numa ideia coerente.
 
Essa aceitação determina que por mais comentários eloquentes que espalhe pelas redes sociais do mundo, a probabilidade de ganhar um Nobel da Literatura ou ser convidado para escrever para uma publicação conceituada são reduzidas.
 
Na nossa condução, podemos e devemos usar o mesmo principio.
 
Devemos portanto aceitar que saber utilizar os comandos da mota, a sua eletrónica quando existe, e até mesmo conseguir superar diversos tipos de dificuldades fora de estrada não significa que se saiba andar em segurança e com consistência, da mesma maneira que saber pegar num telemóvel e instalar uns apps de ajuda à escrita não faz de ninguém o próximo Saramago.
 
Com isso em mente, aceitar onde estamos na nossa evolução técnica traz imensas benesses, sendo que no topo dessa lista temos dois pontos distintos, mas claramente complementares.
 
Primeiro, ao aceitarmos onde estamos evolutivamente vamos aproveitar mais cada passo, e dar um valor diferente a cada conquista, enquanto garantimos que não damos um passo maior que a perna.
 
Uma experiencia comum para muitos é a de demasiado rápido darem por si a tentar andar em areia, por exemplo, uma experiencia que para a maioria se divide entre impossível, aterradora, ou simplesmente desmotivante.
 
Se para alguns a máxima de “água mole em pedra dura” lhes trás as conquistas desejadas no médio ou longo prazo, isso não é sinonimo de um processo agradável, seguro, ou até mesmo tecnicamente são.



Pode ser extremamente divertido tentar superar dificuldades como areia sem se ter obrigatoriamente a técnica correta para o fazer, mas isso não significa que se deve fazer isso continuamente. Imagem advpulse.com 


Para outros, o puro sofrimento do processo escolhido é garantia de uma desistência prematura do desporto, ou de um trauma para a vida com esse tipo de terrenos.
 
Aceitando a nossa capacidade técnica, e remetendo os nossos passeios ao tipo de terrenos que a suportam, a probabilidade de uma experiencia continuamente agradável aumenta em muito, o que aumenta igualmente a vontade de querer continuar a evoluir, e de uma forma geral, de nos mantermos no desporto.
 
Por outro lado, ao aceitarmos o nosso lugar na escada evolutiva, vamos ao contrario do que muitos podem achar, acabar por evoluir largamente mais depressa do que aqueles que o tentam fazer por insistência.

Isto porque é muito mais fácil criar consistência a repetir os mesmos movimentos técnicos vezes e vezes sem conta, do que estar a tentar um diferente a cada tentativa.
 
Assim, apesar de água mole conseguir bater até furar, temos de nos lembrar que a galinha acaba sempre de papo cheio, ainda que o faça somente um grão de cada vez.

SUSTENTA CADA PASSO COM HUMILDADE

É sem duvida possível exponênciar aprendizagem com recurso a cursos condensados, nós próprios na BN temos um Treino Expresso que faz exatamente isso.
 
Ainda assim, qualquer pessoa que já o tenha frequentado sabe que termina o treino com uma quantidade de informação que terá de ser digerida durante dias, semanas, e em alguns casos, meses.
 
Isso diz-nos que apesar de toda a informação ter sido apresentada, e os exercícios executados, a evolução técnica do aluno não está cimentada quando passa o portão da escola a caminho de casa.
 
Não me entendam mal, na esmagadora percentagem dos casos a evolução dos alunos é claramente notória, mas manter a ideia do “grão a grão” e sustentar cada passo que damos, mantém-se, pois simplesmente conseguir executar o que é possível, não significa saber domina-lo.



Todos os treinos evoluem na medida que o aluno permite, mas todos os alunos aprendem e testam a mesma teoria, porque isso é que dá o plano individual a cada aluno, tal como os benchmarks que deve atingir. Imagem BN Adv


Assim, a totalidade da informação passada neste tipo de cursos visa abrir horizontes e garantir que se têm um claro objetivo, e não, em esquema do saudoso Matrix, fazer um download instantâneo de informação que se torna imediatamente pronta a aplicar a cem por cento.
 
Dessa forma, ao aceitarmos o nosso lugar na escada evolutiva, e ao termos um claro objetivo e plano de jogo traçado, podemos passo a passo exponenciar em muito os nossos ganhos técnicos.
 
Se a nível competitivo isso pode significar estar simplesmente a treinar sem correr durante alguns anos, ou ir fazendo corridas a somente 60 ou 70% das capacidades existentes, em moldes lúdicos, isso pode querer dizer que por vezes tenhamos de sair do trilho e voltar para a estrada.
 
Alguém que acabou de começar a aprender, mesmo equipado com uma mota que faça truques de magia, deve manter-se por definição primeiramente em terrenos de Classe 1 a 3.
 
No entanto, uma vez que por norma sistemas de classificação de terrenos não são amplamente utilizados, é fácil darem por si com Classes 4 e mesmo 5 pela frente.
 
Apesar de não existir obrigatoriamente nada de errado com a tentativa de superação desse tipo de terrenos, a insistência em continuar a faze-los somente porque se conseguio supera-los nas primeiras tentativas, pode deitar por terra o trabalho evolutivo já iniciado.
 
Afinal, não nos podemos esquecer que muitas motas fazem magia, e que alguns movimentos técnicos já aprendidos exponenciam esses truques, podendo rapidamente passar a noção de que estamos mais evoluídos do que na realidade estamos.
 
Essa falsa realidade facilmente gera maus hábitos e abre a porta a erros técnicos perigosos e difíceis de corrigir.



Dados Prevenção Rodoviária Portuguesa de 2010/2011 para o programa vamos18-24.pt


A própria estatística de acidentes rodoviários comprova isso, demonstrando um picos de acidentes não nos primeiros dias ou primeiro ano de carta, ou mesmo no fim da primeira década, mas sim entre o fim do primeiro e o quinto ano.
 
Essa é a altura em que o aprendido na escola em junção com o conforto da já alguma experiência na utilização do veiculo tendem a dar ao condutor um sentimento de controle superior ao que na realidade têm.
 
Para nós, no fora de estrada, essa realidade é igual, pelo que nos devemos obrigar a ter a humildade de por vezes dizer aos companheiros de aventura que os iremos reencontrar mais à frente no track.
 
É emocionalmente duro para muitos não se forçar e continuar, afinal, todos os outros o estão a fazer, ainda assim, motociclismo é um desporto individual feito em grupo, o que significa que o que os outros estão a fazer pouco implica na nossa segurança, eficácia, e consistência.
 
Assim, por mais magoado que o ego possa ficar, vão doer muito menos umas bocas e alguma auto martirização do que uma potencial lesão física, seja no imediato, ou no futuro quando tentarmos uma secção que não estamos tecnicamente preparados para fazer, imbuídos por uma falsa sensação de controlo.
 
Por isso, se algumas motas enganam, e se a superação de algumas dificuldades em tracks acima das nossas capacidades iludem, cabe-nos a nós ter a paz de espirito para nos respeitarmos a nos próprios e nos permitirmos evoluir com segurança e consistência.
 
Essa atitude vai mais rapidamente fazer de nós pilotos mais rápidos, seguros, e consistentes, do que qualquer outra abordagem, ou mota mágica.

 

Your riding buddy is trying to kill you!


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