Formação off road, motas pequenas ou grandes?

Formação off road, motas pequenas ou grandes?

No meio do fora-de-estrada, e principalmente no do dual-sport e do adventure, existem muitos chavões de discórdia, e se vos vêm diretamente a cabeça pneus ou óleos, existem outros de igual validade.
 
Entre eles, está a discussão de se devemos aprender técnica e fazer formação com motas pequenas, grandes, ou simplesmente com o que temos na garagem.
 
No artigo de hoje vou-vos deixar não só a minha opinião sobre o tema, mas também o ponto de vista que aplico para as minhas formações na BN EnduroCamp.
 
Um ponto de vista que como sempre partilho na esperança de que ajude pelo menos um de vocês.

OS SUSPEITOS DO COSTUME

Já o disse no passado e continuarei a dizer, pontos de vista discordantes são vitais para o desenvolvimento, e mais ainda quando são fundamentados com argumentos válidos.
 
Isso quer dizer que quando se argumenta que motas mais pequenas são mais leves, por exemplo, isso é um argumento irrefutável.
 
Assim sendo, é impossível não concordar que desenvolver aptidões técnicas numa mota mais leve, é por definição, mais fácil.


A diferença de peso e tamanho entre motas adventure de grande porte e dual-sports é inegável.
Imagem via advpulse.com


Outro argumento de peso é a diferença de tamanho entre motas.
 
Mais uma vez, a irrefutabilidade deste argumento torna totalmente impossível negar que o tamanho influencia facilidade de manobrabilidade, e com isso, dificuldade de utilização e aprendizagem.
 
Ainda assim, e concordando a 100% com ambos argumentos, sou obrigado a considerar que estes e outros suspeitos do costume têm uma falha comum.
 
Essa falha é a falta de uma clara base de comparação.
 
Para algo ser mais ou menos pesado, têm de haver uma concordância no que é um “bom peso”, ou por outras palavras, um peso de referência.

De igual maneira, o mesmo pode ser dito sobre tamanho, potência, ou demais métricas.
 
Assim, e ao ver-me obrigado a encontrar uma base para poder fundamentar a minha opinião, apesar de concordar com os argumentos apresentados, tenho de os considerar na sua generalidade, incompletos.

A ELUSIVA BASE DE COMPARAÇÃO

Apesar de sermos todos diferentes, seja em termos físicos, emocionais, ou mentais, existe um ponto de convergência entre todos os pilotos que querem dominar bem uma mota, e isso é uma boa aplicação de técnica.
 
É obvio que é possível aplicar técnicas diferentes, e que as próprias técnicas ao evoluir, mudam.

Da mesma maneira, é irrefutável que certos tipos de mota têm certas técnicas que lhes são únicas, ainda assim, os fundamentais do que é “a” técnica de condução fora-de-estrada são coerentes entre si.


Uma excelente posição corporal que pode e deve ser utilizada nas mais variadas modalidades de duas rodas fora-de-estrada.
Imagem via racerxonline.com


Assim, e utilizando técnica como base comparativa, acredito que com as devidas explicações de contraste, pode-se facilmente aprender e evoluir com qualquer mota.
 
Quando digo explicação de contraste, estou-me a referir ás limitações da técnica impostas por cada tipo de mota, a cada piloto especifico.
 
Esta ideia pode parecer confusa, por isso é importante desenvolver mais detalhadamente este conceito.
 
Não excluindo multidisciplinaridade, se aceitarmos que em termos técnicos o pico máximo do fora-de-estrada em duas rodas é o supercross e motocross, temos então aqui a fonte de onde todas as nossas técnicas base vão nascer.
 
Por serem modalidades desenvolvidas em "cabras do mato", tiram partido da imensa liberdade de movimentos corporais que estas motas oferecem. 

Assim, é-nos facilmente permitido mexer o corpo desde o guarda lamas traseiro, até ao guiador, por exemplo.

Em contraste, o desenho de uma mota de adventure obriga-nos a ficarmos mais encaixados no cockpit, algo que largamente dificulta chegar o nosso peso muito para trás, ou para a frente.
 
Com esta comparação, facilmente se diria que a mais pequena endurista é mais fácil de manobrar do que a maior adv, no entanto isso seria uma visão limitada.
 
Isto assim o é porque alterações em motas, podem produzir resultados semelhantes ao encontrado nesta comparação direta entre motas de cross e adv.
 
Por exemplo, pequenas motas de enduro equipadas com tanques de combustível auxiliares ou de maiores dimensões, podem de igual maneira limitar a liberdade de movimentos de um piloto.
 
No entanto, estas limitações dizem somente respeito a motas como hardware, e não levam em conta que um piloto de 1.90m ou um de 1.70m a conduzir a mesma mota vão ter dificuldades particulares.
 
Assim sendo, a facilidade ou não com que se consegue aprender técnica não se prende pelo tipo de mota em si, mas sim pelas limitações da aplicação de técnicas a que cada piloto se vê obrigado na sua própria mota.

Vendo as coisas desta forma, encontramos agora um padrão de limitações que é facilmente replicável para qualquer tipo de movimento técnico que se queira aprender.


Apesar de ambos os pilotos estarem a utilizar a mesma técnica, vê-se perfeitamente as diferentes limitações entre motas. Por exemplo, o espaço disponível entre a cabeça e a frente da mota, o que dita que na endurista o tronco pode descer muito mais do que na adventure. Diferenças de alturas entre pilotos produzem limitações semelhantes até na mesma mota.
Imagem via The Mx Factory, newmotor.com.cn e BN EnduroCamp

 

TENS O QUE TENS

Ver o problema desta perspectiva é importante porque com uma base de comparação padronizada, como instrutor, torna-se bastante fácil adaptar ensinamentos e técnicas a cada piloto como um indivíduo único.
 
Isso quer dizer que se se ensinar a técnica correta, explicar a possível limitação da mesma para a nossa mota e para o nosso físico, e de que maneira é que isso nos pode ou não dificultar a vida no terreno, pode-se aprender técnica em qualquer mota.
 
Esta opinião torna-se ainda mais vincada com um fenómeno que sempre me fascinou, o da diferença evolutiva entre os alunos que fazem treinos com motas próprias, e os que os fazem com as motas da escola.
 
Se por um lado é clara a velocidade de evolução dum aluno a utilizar motas alugadas, para a maioria das pessoas esse efeito é quase que maquilhagem técnica.
 
Isto porque assim que passam para a sua mota, parece que agora de cara lavada se esqueceram de tudo o que acabaram de aprender na mota da escola.
 
E sim, ainda que alguns tenham alguma recuperação evolutiva no medio prazo, esse não é o padrão encontrado na maioria.



O treino que cada um faz a nível pessoal é essencial para se continuar a evoluir. Seja qual for o curso que se fez, sem treino pessoal continuo, tudo se esquece.
Imagem BN EnduroCamp


Por outro lado, alunos a aprender com mota própria, tendem a demonstrar uma evolução mais contida, mas ainda assim, continua.
 
Ainda que parte dessa diferença evolutiva venha do medo de deixar a mota pessoal cair, mais uma vez, aqui a base e o padrão atrás referido voltam a ser aplicáveis.
 
Isto porque ao não estarmos a falar pilotos com uma maturidade técnica elevada, ao saltarem de uma mota para a outra no fim do treino, os recém formados alunos sentem-se como um peixe fora de água.
 
A falta de coesão entre os limites das diferentes motas, aliada há ainda fraca capacidade de aplicação técnica, causam uma reação defensiva.
 
Essa reação natural, é exponenciada pela contra-naturalidade de muitos movimentos técnicos, que pelo seu desconforto no inicio, levam estes pilotos a evitar ou modificar movimentos, por insegurança para com a sua própria mota.
 
Assim, aprender com recurso à mota com que se vai andar regularmente permite uma base de desenvolvimento mais lenta, mas ainda assim mais segura, confortável, e consistente para se desenvolver as aptidões técnicas necessárias.

QUERES O QUE QUERES

Não existem regras sem exceções, e isso significa que existem sem duvida momentos na vida para se treinar ou simplesmente andar com motas diferentes da nossa.
 
Ainda assim, estas situações assentam numa premissa muito clara, a de tenderem a ser sempre mais produtivas quando efetuadas por pilotos com um consistente conhecimento técnico.
 
A necessidade desta premissa torna-se clara até em exemplos tão simples como o de um test drive.
 
Se eu tiver dificuldades técnicas na minha mota, a probabilidade é de que continuarei a ter as mesmas dificuldades técnicas com qualquer outra mota que esteja a experimentar.


Dificuldades técnicas com uma mota mantém-se noutras motas, ainda que diferentes motas permitam alguns erros com mais facilidades que outras.
Imagem via riumphrat.net


Assim, a única medição possível de ser feita num test drive é a de que mota melhor se adapta ás minhas limitações.
 
Por outro lado, pilotos com um bom conhecimento técnico conseguem testar qualquer mota com uma visão muito diferente, pois é-lhes permitido testar os limites da aplicação de diferentes técnicas nessa mota especifica.
 
Este é um imenso beneficio para quem está á procura de uma mota que para além de lhe encher o olho, lhe sirva um propósito claro.
 
Ou seja, a definição de uma ou outra mota ser “mais capaz para fora-de-estrada” deixa de se tornar subjetiva, e passa a assentar na clara compreensão pessoal do que a mota a teste permite ao piloto fazer, e de onde isso se encaixa nos nossos objetivos pessoais.

MECÂNICA CORPORAL

Se acredito que podes e deves aprender as bases técnicas com a mota que tens, essa afirmação tem a palavra base no meio por uma razão.
 
Essa razão prende-se pelo facto de que quando começamos a falar em técnicas mais avançadas, as coisas podem mudar de figura.
 
Ainda assim, acredito que não há problema em continuar a utilizar a nossa mota, nem que seja porque qualquer aluno nesta fase já está incrivelmente ciente das limitações que vai encontrar com a mota que têm.
 
No entanto, aprender inversões de sentido em pivot com uma mota de mais de 100cv e 200kg, mesmo nas mãos de um piloto de maior porte, por exemplo, pode ser muito intimidante.


Pivots podem ser feitos utilizando várias técnicas, no entanto, em motas grandes, todas elas requerem uma boa dose de coragem para as primeiras tentativas.
Imagem via youtube de 
Shaun Terblanche


Assim, o acesso a motas mais pequenas, como 110cc, pode ser muito benéfico.
 
No exemplo deste tipo de pivot, por exemplo, a dificuldade prende-se na coragem para largar a embraiagem e entender onde o corpo tem de estar para manobrar o peso da mota em movimento.
 
Essa mecânica corporal e timing de controlos podem rapidamente ser dominados numa 110cc, o que pela já existente experiência piloto, torna a técnica facilmente replicável na sua própria mota.

FAZ A TUA PARTE

Com esta explicação em mente, é fácil perguntarmo-nos porque é que perdemos este tempo todo e não se aceita logo que se deve começar com uma mota mais pequena.
 
Afinal, chegamos a conclusão que é mais fácil desenvolver técnica com motas pequenas, e uma vez dominada, é relativamente simples a sua aplicação em motas de maior porte.

Se bem se lembram, este foi um dos argumentos com que concordei logo no inicio deste artigo.

Ainda assim, e por mais válido que esse argumento seja, o mesmo perde legitimidade quando posto em contexto.

Esse contexto obriga-nos a não só considerar o relatado sobre a evolução de alunos com motas alugadas vs motas próprias, mas também a considerar um ponto fulcral do motociclismo, a paixão que move cada motociclista.
 
Desenvolver técnica requer trabalho e compromisso, e isso significa que é um processo moroso, e isso só por si tende a afastar muitos da procura por formação.


É um enorme prazer ver alunos de todas as idades a continuarem procurar desenvolver a sua técnica fora de estrada, seja com que mota for.
Imagem de treino BN EnduroCamp


Assim, se já é complicado para muitos aceitar a necessidade de aprender técnica, mais complicado será se lhes for dito que não devem treinar com a mota que os faz sonhar á noite e que tanto trabalharam para comprar.
 
Essa é a razão pela qual prefiro ver cada piloto como o ser individual que é, com os seus sonhos e objetivos próprios.
 
Esta visão, aliada ás explicações dadas, permitem que o nosso fora-de-estrada se torne mais abrangente, acolhedor, e acessível a todos, sem que isso limite a qualidade e quantidade de informação que está a ser lecionada.
 
Queres aprender com uma mota pequena?
 
Perfeito.
 
Queres aprender com uma grande?
 
Perfeito na mesma.
 
O que é importante é que queiras aprender.
 
Assim, o ponto fulcral desta discussão não deve ser qual a melhor mota para aprender, evoluir, ou até mesmo para andar no dia a dia, pois como ficou provado existem formas de ensinar exatamente a mesma matéria aos utilizadores de todas elas.
 
Dessa forma, o que devemos fazer como comunidade é virar o bico ao prego.
 
Devemos então investir na nossa formação, e fazer com que a discussão geral passe a ser sobre a necessidade de se aprender com quem sabe ensinar, em vez do tamanho da máquina em que essa aprendizagem deve ser feita.

 

Your riding buddy is trying to kill you!


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