Areia não é só cu para trás e acelerador!

Areia não é só cu para trás e acelerador!

É indiscritível o número de pessoas que vejo online - ou mesmo de alunos que me aparecem nos treinos - que têm para contar a história de como compraram a sua primeira mota, seja de enduro ou adv, e a primeira coisa que fizeram foi meterem-se na areia.
 
Afinal, raro é aquele que chega ás duas rodas fora de estrada sem pelo menos um pouco de Dakar dentro de si, e como tal, com uma atração especial pelas areias que dele fazem parte.
 
Com isso em mente, é então importante falarmos um pouco sobre areia, seja para te ajudar a ti, ou a qualquer amigo que tenhas que se encaixe neste padrão.

NÃO EXISTEM TÉCNICAS AVANÇADAS

Muitos são fans da aprendizagem em esquema de DIY, e se como ser humano sou obrigado a aceitar essa visão, como instrutor profissional sou obrigado a apontar-lhe alguns erros.
 
Se por um lado a escada evolutiva torna-se mais complexa, por outro pode mesmo ter alguns degraus em falta pelo simples facto de existirem falhas na abordagem.
 
Uma dessas falhas é normalmente a errada perceção de que existem técnicas básicas e avançadas, aliada á falta de entendimento de quais são as reais necessidades de qualquer piloto.
 
Na realidade, existem somente cinto pontos básicos necessários para se saber dominar bem uma mota; controlo de embraiagem e acelerador; controlo de travões; posição corporal e equilíbrio; compreensão do funcionamento da mota e da física que a gere; e compreensão do nosso corpo.



Treinos como o nosso Treino Expresso focam-se em oferecer os conhecimentos para começar a desenvolver os cinco pontos de conhecimento necessários para dominar bem uma mota fora de estrada. Isso pode ser aprendido e atingido com qualquer mota, e por pilotos de qualquer idade. Imagem de um treino BN EnduroCamp

 

Na larga maioria das formações fora de estrada bem estruturadas, esses são os tópicos que são abordados nas primeiras aulas, e isso assim o é porque a sua compreensão e aprendizagem ditam os alicerces de uma boa evolução futura.
 
No entanto, essa evolução não passa por aprender mais bases estruturantes, mas sim por conseguir utilizar cada um desses cinco conceitos de maneiras cada vez mais precisas, e por sua vez, em sequencias mais complexas.
 
Com este entendimento presente, areia por si só não é um tipo de terreno mais avançado do que um estradão de terra batida, é sim um tipo de terreno que obriga a que o piloto tenha uma compreensão mais profunda dos cinco pontos básicos do todo o terreno em duas rodas.
 
É possível fazer areia sem aprender bem os básicos?

Claro, sem dúvida, mas viver e sobreviver são dois conceitos muito distintos, e cabe a cada um de nós escolher com qual queremos viver.

EXISTEM DIVERSOS TIPOS DE AREIA

É quase impossível falar-se de andar em areia sem que apareçam comentários sem fim a afirmar que tudo o que é preciso “é chegar o peso para trás e acelerar a fundo”.
 
Como já falei no passado, é imperativo em qualquer ponto da evolução técnica que se pergunte “porque”, e que não se aceite simplesmente o “como” desta ou daquela técnica, e este é um dos casos onde essa mentalidade é muito benéfica.
 
Ainda assim, isso não significa que “cu para trás e acelerador” seja por definição uma máxima incorreta, mas sim uma incompleta, uma vez que deixa de lado vários pontos importantes a ter em conta, para começar, o tipo de areia a que nos tamos a referir.



É difícil negar que ele está a andar em areia, no entanto, o seu posicionamento está longe de ser peso atrás e gás, como a sabedoria popular nos leva a querer que é “A” forma de conduzir na areia. Existem vários tipos de areia, e com eles, várias aplicações técnicas possíeis. Imagem amcn.com


Se fora de estrada como diferentes tipos de terreno é um espectro que merece uma explicação mais abrangente do que “simples” ou “difícil”, a areia não é diferente.
 
Areia de praia ou do deserto, areia de pinhal, areia funda ou superficial, areia molhada ou seca, areia amarela ou barrenta, até mesmo o tipo de fundo onde a areia assenta são algumas das características que descrevem diferentes tipos de areia, e como tal, a escolha de abordagem que devemos ter para com ela.
 
Assim, fazer 300kms de areia no deserto, não é o mesmo que numa estrada de terra batida atravessar 500 metros de areia, que pode por si só contar com as mais variadas características.
 
Dessa forma, devemos não só perguntar porque é que rabo para trás e acelerador é a técnica a utilizar, como devemos ficar céticos quando esse chavão é utilizado sem qualquer intenção de tentar entender o tipo de areia de que se está a falar.

PESO PARA TRÁS E ACELERAR, NÃO CHEGA

Se peso para trás e acelerador a fundo é a técnica de eleição da grande maioria, é porque algum fundamento tem, e essa realidade é indiscutível.
 
Afinal, quer o peso na traseira da mota, quer o conceito de acelerar continuamente apontam ao mesmo objetivo, tirar peso da roda da frente, o que por sua vez vai fazer com que a mota consiga mais facilmente navegar terrenos arenosos.
 
Ainda assim, ao analisarmos mais profundamente o conceito desta técnica, facilmente nos deparamos com perguntas que necessitam de resposta.
 
Rabo para trás, significa esticar os braços tanto quanto possível? E as pernas, devem ter alguma posição particular?
 
Acelerar “a fundo” até quanto? Com motas de enduro a adventure com incríveis rácios de peso potência, devemos mesmo manter o acelerador cravado como nos é dito?



É possível ser-se proficiente na areia com várias motas, no entanto, e sem saber a aptidão técnica deste piloto, posso garantir que ele está longe de ir a acelerar a fundo nesta situação. Imagem asphaltandrubber.com


E como funciona em curva? Se por definição o objetivo desta manobra é aliviar a roda da frente, como é que se deve abordar uma curva apertada, ou uma aberta?
 
Ou até mesmo subidas e descidas de areia, devemos manter a mesma abordagem de peso para trás e acelerador mesmo quando o terreno não é plano?
 
Com estas e outras perguntas em mente, facilmente compreendemos que apesar desta técnica estar cimentada num conceito ganhador, e ter aplicabilidade em vários tipos de areia, ela está não só incompleta na forma como é aconselhada, como potencialmente não será a indicada para todas as situações.
 
Dessa forma, somos obrigados a aceitar que outras soluções são obrigatoriamente existentes, e que as devemos adicionar ao nosso arsenal se queremos conquistar as mais variadas areias do planeta.

PONTOS CHAVE

Quando no inicio deste artigo falámos nos cinco pontos básicos para a condução fora de estrada, no seu centro está o conceito de não perturbar a mota e deixa-la trabalhar da melhor maneira.
 
Dessa forma, dominando-os, vamos conseguir não só ter a liberdade mental necessária para ler o terreno, mas igualmente para compreender o que a mota nos está a pedir através das suas reações e manutenção de momento.
 
A aplicação da compreensão desse momento e estabilidade contrastam com o truque típico que muitos apresentam quando num estradão, ao verem areia, se sentam, poem os pés de fora, reduzem a velocidade, e pedalam todo o percurso.
 
Uma abordagem que tecnicamente não é difícil de corrigir.
 
Começando de uma boa posição triangular central, basta olhar para o final da areia para escolher a melhor linha, manter a velocidade, ou sabendo que areia atua como um travão, acelerar ligeiramente, e imediatamente o sucesso e esforço da manobra alteram-se.



É claramente visível que o peso dele está basicamente em cima da roda traseira, e que a roda da frente mal vai a fazer contacto com o solo. Ainda assim, os seus braços estão longe de estar esticados, e o posicionamento dos seus pés e joelhos dita uma rápida capacidade de reação se necessário. Imagem via adbmag.com.au


Sem duvida que existem mais pontos que podemos ter em conta, tal como controlo de respiração, posição de pés e joelhos, ou até mesmo pneus e setup da mota, ainda assim, talvez o mais importante de referir é que não falei em recuar o peso, ou o típico, por o rabo para trás.
 
Isso foi obviamente propositado, porque numa posição triangular central, a nossa roda da frente tem uma grande liberdade, pelo que se mantivermos ou ligeiramente aumentarmos a velocidade ao chegar á areia, iremos conseguir facilmente navegar as secções arenosas típicas dos estradões portugueses.
 
Da mesma forma, como nos encontramos numa posição ativa e estamos à procura de sinais de instabilidade da mota, conseguimos rapidamente baixar ou recuar o nosso peso para compensar a mota se for necessário.
 
Esta posição ativa é no entanto inexistente quando por exemplo se vê pilotos com o peso tão para trás que os seus braços estão completamente esticados.
 
Esse ponto é tão critico que se só retiverem uma nota deste artigo, que seja que o limite do quão para trás podemos ir com segurança, é definido pelo quanto conseguimos esticar os braços sem bloquear o movimento lateral da roda da frente.



Chegar o peso para trás nunca deve ser feito em detrimento do bloqueio dos braços. Se a tua mota não tiver o tamanho certo para ti, este perigo é real. Ainda assim, é importante aprender que o movimento de peso é sempre feito alongando-nos na mota, e não forçando uma posição com o corpo todo. Imagem BN EnduroCamp


Como analogia visual, imaginem um pequeno barco a motor onde não só a velocidade mas igualmente o trim do motor têm de ser tido em conta, na mota, o objetivo é planar por cima da areia com controlo e sem afundar ou levantar demasiado a frente, algo difícil de atingir se mantivermos o acelerador a fundo e o peso constantemente no guarda-lamas traseiro.

Assim, um bom entendimento de posição, de terreno, de acelerador, e de feedback da mota, permitem um ajuste preciso durante a travessia da areia, e tornam esta “manobra avançada” simplesmente uma clara junção dos pontos básicos aprendidos no primeiro dia.

USAR A EMBRAIAGEM NÃO É CRIME

Outro truque muito válido a utilizar em areia, principalmente quando é necessário fazer manobras como curvas apertadas, é o uso da embraiagem, no entanto, é raro que se fale nesta técnica sem pelo menos uma pessoa apontar o risco de queimar os discos.
 
Essa visão é errada, pois assume que usar a embraiagem obriga a puxa-la totalmente, ou a andar constantemente na zona em que a mesma patina.
 
As motas são veículos desenhados ao milímetro, pelo que a nossa utilização dos mesmo deve ser igualmente milimétrica, e não baseada na ideia do oito ou oitenta.
 
Dessa forma, com o controlo de embraiagem e compreensão da mota aprendidos nos nossos pontos básicos, rapidamente adquirimos a sensibilidade necessária para compreender que por vezes, uns milímetros de embraiagem fazem a diferença que permite levantar a roda da frente o suficiente para aumentar as nossas possibilidades de sucesso.
 
Seja aliviar a frente para passar de um rego para o outro, para ultrapassar um obstáculo, ou até mesmo para mudar de direção em espaços apertados, esta aplicação avançada de conceitos básicos funciona igualmente bem de motas enduristas até ás grandes adventures.



Sem dúvida que é possível fazer curvas de uma forma agressiva e no acelerador, mas isso não dita controlo, o que não dita segurança e consistência. Saber utilizar bem o acelerador, embraiagem, e posição corporal ajudam em muito a poder fazer algumas manobras a uma velocidade mais fácil para o cérebro processar. Imagem adbmag.com.au


Além disso, têm a grande benesse de permitir que tudo isso seja feito sem um acréscimo exponencial da velocidade, algo que nos permite não ficar rapidamente a pilotar acima das nossas reais capacidades.
 
Sem dúvida que em regimes competitivos esta sensibilidade é mais difícil de gerir, seja pela pressão da corrida, pelo regime a que o motor trabalha, pelo desgaste físico, ou até mesmo pela necessidade de poupar ao máximo a mota, mas em ambientes lúdicos, é um recurso que bem utilizado promove excelentes resultados, sem desgaste prematuro do material.
 
Eu, por exemplo, utilizo-o nos mais diversos tipos de terreno e situações, e a minha embraiagem conta com mais de 60.000kms sem queixas.
 
É então crucial frisar que usar a embraiagem não é crime, mas assumir que o uso da mesma é sempre um movimento de ON e OFF, isso sim deveria ser passível de coima.

O CONTEXTO É CHAVE

Quem já teve aulas comigo ou lê regularmente os meus artigos sabe que eu sou um grande apologista da posição central na mota agregada á iniciação de movimento.
 
Se por um lado é a melhor forma de manter a mota estabilizada, um ponto fulcral para o bom funcionamento deste veiculo, por outro, permite-nos uma amplitude de opções largamente superior.
 
Todos já vimos imagens do Dakar em que eles vão de punho trancado basicamente sentados no guarda-lamas traseiro, no entanto, tomar essas imagens como evangelho da técnica a utilizar em areia, é perigoso.
 
Isso porque qualquer imagem tem de ser analisada em contexto, e se por um lado o deles é competitivo com a necessidade de serem os mais rápidos possível, por outro, tendem a somente escolher essas posições em zonas abertas e com boa visibilidade.



A largada da praia no Dakar deixou-nos com excelentes imagens de como diferentes pilotos abordaram este tipo de areia em terreno aberto. Dito isto, é fácil ver como os braços de todos os pilotos desta foto estão no limite, reduzindo drasticamente as suas opções. Mais limitado ainda está o piloto da Honda, que altera em muito a posição dos joelhos, puxando tanto quanto possível o seu corpo para a traseira. Nenhuma destas posições é de forma geral necessária em moldes lúdicos. Imagem adbmag.com.au



Assim, escolhem obter a maior velocidade possível em detrimento das suas opções quanto a capacidade de reação, algo que como pilotos lúdicos ou guerreiros de fim de semana, nunca deve ser a escolha primária.
 
Para a larga maioria de nós que não só não estamos em regimes competitivos como não estamos em pistas de areia sem fim, é importante mantermos as nossas opções em aberto, e por opções diga-se, capacidades de escolha de posição em relação ao terreno.
 
Um colega que caiu, um perigo no trilho que nos obriga a uma travagem de emergência, uma curva que apareça do nada, ou até mesmo um problema mecânico, podem obrigar a uma rápida alteração de atitude corporal, e quanto mais atrás na mota estivermos, mais tempo iremos demorar a reagir.
 
Com isto não quero dizer que não se deva, ou mesmo que não se possa chegar peso para trás para alivar ainda mais a frente, quero somente dizer que com as cinco bases bem aprendidas, a tendência de nos sentarmos em cima da matricula tende a ficar reduzida a alguns locais, tipos de areia, e momentos específicos.
 
Afinal, o nosso objetivo é chegar ao fim do dia vivos e inteiros, e isso obriga a uma atitude mais preventiva e segura do que a escolhida por quem é pago para correr contra o relógio.
 
Muito mais poderia ser dito sobre cada um destes pontos, tal como sobre outros tantos que nem sequer foram referidos, mas ainda assim, pouco mais é necessário dizer para cabalmente se poder afirmar que existe um mundo de areia para aprender.
 
Com isso em mente, foquem-se em garantir que aprendem as bases certas antes de se aventurarem na areia, façam formações base coerentes e estruturadas, e se quiserem, inscrevam-se em cursos de areia dedicados.
 
A vossa segurança está nas vossas mãos, o que significa que podem escolher aprender com chavões, ou com a ajuda de quem sabe ensinar.
 
E se nada do que expliquei fez sentido, já sabem, podem sempre esquecer tudo o que aqui foi dito, simplesmente por o rabo para trás, e dar-lhe gás.

 

Your riding buddy is trying to kill you!

 


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