O erro do "conforto"

O erro do "conforto"

Adoro a definição de conforto no que diz respeito a motas, principalmente porque, sendo algo tão particular, num mundo a preto e branco convém perceber o que é que isso quer dizer na terra.

Principalmente, porque esta é uma realidade que a ciência conhece bem.

CONFORTO NÃO É OBRIGATORIAMENTE ESTAR CONFORTÁVEL

Para quem gosta de ler o que escrevo - ou como ensino nos treinos - não será surpresa que aposto forte na técnica e na nuance pessoal de cada um. Para mim não é diferente. Eu compro o peixe que vendo.

Sempre que agarro na mota para ir andar, seja para trabalhar ou simplesmente para me divertir - algo que infelizmente não faço tantas vezes como gostaria - quero garantir que a minha técnica está no melhor estado possível, e isso é independente de estar confortável na mota, ou não.

Mas afinal, que piloto profissional - ou lúdico - quer estar a batalhar conforto quando está a conduzir?

Na realidade, nenhum, e essa confusão vem da definição de conforto, mais do que da ideia dele.

Para mim, conforto em cima da mota é chegar vivo e sem danos ao fim do dia. Simples, replicável em qualquer mota, e diretamente ligado ao que realmente importa: a minha segurança.

Por isso pergunto: será que estar confortável nos retira segurança?

Eu tendo a cair para o lado do sim, porque ao longo dos anos vi muitas vezes segurança a bater de frente com estar “confortável”.

Vamos a um exemplo clássico: vidros altos na terra.

Um extra que, no papel, oferece conforto extremo: menos vento no peito, menos turbulência no capacete, menos cansaço muscular.

Se víssemos assim, quase que o poderíamos apelidar de um extra perfeito… mas talvez só na estrada.

Na terra, um vidro alto ocupa muitas vezes o espaço onde precisamos de ter o corpo. Quando tens de te chegar à frente na mota - seja numa subida mais técnica ou numa aceleração mais viva - ele tende a estar no caminho. Literalmente.

E não estou a falar em “suponhamos”.

Em muitos treinos mais sérios, instrutores retiram vidros das motas antes de se iniciar qualquer exercício. 

Eu, na minha parte, as duas vezes nos últimos anos em que precisei de usar o meu kit médico foram exatamente por causa de um vidro alto na terra. Numa, o vidro entrou entre o capacete e os goggles do aluno e cortou-lhe a cara. Noutra situação semelhante, o vidro foi-lhe direto à traqueia, felizmente ambos sem problemas de maior.

Estes são apenas alguns exemplos concretos do que podemos ver como um problema maior ainda.

Isto porque o conforto tende a dar-nos folga mental. Tanto que inúmeros estudos, e práticas de optimização de performance apontam certos níveis de desconforto como cruciais para aumentar capacidade de concentração sustentada.

Por isso, ainda na ideia do vidro maior, se o vento deixa de te incomodar, relaxas o tronco. Isso significa que tendencialmente irás perder postura, e com ela a estabilidade da parte superior do corpo. Logo, existe uma clara tendencia para perderes eficácia, e com ela a tua segurança ativa e passiva.

Esse é o preço a pagar por eliminar um bocadinho de vento e o pequeno desconforto da turbulência na terra, por exemplo.

A mesma lógica do relaxe versus eficácia, no extremo, pode expandir-se a outros exemplos, tal como a tampões demasiado fortes, que retiram totalmente a perceção do que nos rodeia.

Certas roupas de adventure touring usadas em dual-sport ou enduro, que protegem tanto que roubam destreza, reação, mobilidade e te cozinham vivo na terra por mais ventilações que tenham.

Botas de terra “mais moles”, que só ganham esse nome por serem menos protetoras num ponto ou no outro.

Tudo isto mostra que, quando olhamos para a mota e para o equipamento pela lente da segurança e da performance, percebemos rapidamente uma coisa: conforto na terra não significa diretamente o mesmo que estar confortável.

ENTÃO O QUE É CONFORTO?

Para mim, conforto é tudo o que me permite dar o meu melhor em cima da mota de forma a garantir a minha segurança. Simples… até deixar de o ser.

Isto acontece porque certas coisas diluem a linha entre conforto e estar confortável.

Um banco decente, por exemplo, não é luxo digno de quem quer estar confortável: é segurança ativa. Afinal, se passares o dia a sentir o rabo a doer, não vais estar a pensar no que interessa: a tua condução. Quem não sabe que uma pedra no sapato ou cueca enfiada sabe-se-lá-onde é suficiente para destruir o foco de qualquer um?

Logo, eliminar esse desconforto é obrigatório para garantir atenção focada e, como tal, segurança ativa.

Podíamos dizer o mesmo sobre punhos, por exemplo. Cada um terá a sua versão disto, seja pelas mãos, costas, pulsos, articulações, o que for.

Eu tenho as duas mãos partidas, por exemplo, por isso se o punho não for de espuma, vou ter mais dores. Se estou a conduzir com dores, deixo de me segurar bem e começo a estar mais distraído. E se isso acontece, deixo de estar tão seguro como poderia estar.

Alguns poderiam chamar-lhe comodismo. Eu chamo-lhe sobrevivência em movimento.

Isto porque no fundo, conforto deve ser tudo o que te permite fazer o melhor possível sem te distrair, o que significa que o que isso é na prática, será sempre pessoal. Vai sempre depender do corpo, das limitações, das escolhas e das prioridades de cada piloto. E infelizmente, vai-se basear numa boa dose de tentativa e erro.

Assim, eu arriscaria dizer que conforto em cima de uma mota na terra é tudo o que não puder ser comparável a um martini à beira da piscina.

Isto porque conforto deve ser visto como uma ferramenta de segurança ativa, não um luxo passivo.

E tudo o resto deve ser somente conversa de café sobre coisas giras que podemos gostar de ter, mas não precisamos para sobreviver.


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