Há coisas que não se ensinam

Há coisas que não se ensinam

Como instrutor de fora-de-estrada dedico a minha vida a procurar as melhores formas de passar informação ao próximo. 

No entanto, fui obrigado a aceitar que há certos aspectos técnicos que não posso ensinar.

E não, não é por ser incapaz, mas por ser totalmente impossível de ser feito, e hoje, é sobre esses inatingíveis tópicos que vamos falar.

 

ENCONTRAR TRAÇÃO

Quando digo que certos tópicos são impossíveis de ensinar, não quero dizer sejam impossíveis de explicar.

Tração, por exemplo, é um tópico que é perfeitamente explicável.

Os pontos de tração de pneus, dependendo do tipo de terreno, pressão, temperatura, humidade e muito mais são conhecidos e detalhadamente estudados, por isso, são explicáveis.

Mas não é a esse conhecimento que me refiro.

 

Imagem de researchgate.net
Imagem de researchgate.net

 

O conhecimento de que pneus não gostam de fazer multitasking, detalhando a diferença entre travar e virar, e virar e travar, por exemplo, está mais do que documentado, pelo que é explicável.

Mas também não é a isso que me refiro.

Saber que certos tipos de terreno têm diferentes tipos de tração, como a diferença entre relva, barro, pedra, e até mesmo as diferenças entre areia de praia, areia de duna, e areia de pinhal são conhecidas, pelo que são explicáveis. 

Mas ainda assim, também não é a esse tipo de conhecimento que me refiro.

E não o é porque o problema de ensinar alguém a encontrar tração não é técnico, mas sim humano.

Ver alguém como o Graham Jarvis, ou o Johnny Walker a passar com uma leveza digna do Bolshoi em certas secções que outros pilotos de topo têm dificuldades, essa é a parte que não se pode ensinar.

 

Imagem de ktm.comImagem de ktm.com

 

E ao contrário do que podem pensar não é por pilotos como eles serem autênticos aliens dotados de um dom único.

Não me levem a mal, é sem dúvida uma parte muito importante desta equação, mas talento só nos pode levar até certo ponto.

Aprender a fundo tópicos com os que referi anteriormente, e fazer alguns treinos dedicados a reconhecer melhor cada tipo de terreno são recursos incríveis de se ter, e que devem ser trabalhados. 

Ainda assim, a aplicação desses conhecimentos está dependente da mais pura sensibilidade, com diferentes pilotos a terem opiniões semelhantes sobre diferentes terrenos, mas a senti-lo de uma forma particular.

Ainda que eu acredite que no fundo o resultado final vem de uma mistura de vários inputs diferentes, são todos baseados em sensibilidade pessoal, e isso, é impossível de ensinar.

Com isso em mente, fico limitado a recomendar-vos que pesquisem e aprendam os básicos sobre tração, que aprendam a ler os tipos de terreno, e que relaxem quando for hora de por tudo em prática.

Cada um de vocês é único, e portanto vai aplicar a teoria de uma forma única.

Aceitar essa realidade vai-vos permitir melhorar muito mais rapidamente a vossa capacidade de meter o pneu no sitio certo.

 

LER LINHAS 

Tal como no tópico passado, escolher as melhores linhas é algo estudado e documentado, e portanto, explicável.

Entrar em curva mais por fora ou mais por dentro, fazer um ápex tardio ou não, e a influência que cada uma dessas trajectórias têm em cada linha é matemático. 

Image de stereopbiker.blogspot.com com exemplo de trajectóriasImage de stereopbiker.blogspot.com com exemplo de trajectórias

 

Em pista, aplicar esse tipo de conhecimento para marcar pontos específicos que vão melhorar a entrada num salto, ou numa sequência específica, é um trabalho de casa que muitos pilotos de topo têm como obrigatório.

Muitos, ao fim de somente algumas voltas em pista conseguem não só desenhar a mesma, mas também marcar ponto por ponto onde começam a travar, acelerar, e até mesmo em que mudança vão em cada zona para atingir a linha desejada.

Essa capacidade treina-se, e portanto, é explicável.

A parte que se torna impossível de ensinar, é tal como no tópico passado, a componente humana.

Temos pneus a desgastarem-se, zonas da pista a ficarem mais ou menos desfeitas à medida que o pelotão passa, desgaste físico, a pressão da competição e outros tantos factores que nos podem impossibilitar de escolher a melhor linha.

 

Imagem de motosport.comImagem de motosport.com

 

A quantidade de variantes em jogo é tremenda, e a capacidade de saber quando adaptar a táctica é uma questão de sensibilidade, e isso, não se ensina.

É óbvio que seguir atrás do adversário por algumas voltas nos dá a vantagem de aprender a sua linha e traçar um plano de ataque.

Mas a pressão do resto do pelotão, o stress da competição, e a adrenalina a cegar-nos o julgamento podem fazer essa técnica básica impossível de aplicar, por exemplo.

A capacidade de decisão para um ataque apressado ou metódico, ou de alteração de táctica para fazer uma curva ou preparar um salto no meio do caos competitivo é puramente pessoal e impossível de ensinar.

Ainda assim, fazer análise de vídeos de pilotos de topo, parando o vídeo e tentando antecipar qual a linha que ele vai escolher, e qual nós escolheríamos é um trabalho de casa que promove resultados excelentes por abrir horizontes.

 

Imagem de vitalmx.comImagem de vitalmx.com

 

Por isso faz o teu trabalho de casa, desenvolve uma táctica de jogo antes de te fazeres à pista, e relaxa e respira.

Essa vai ser a única forma de teres a sensibilidade necessária para aplicares e puderes alterar o plano da melhor forma, sempre que isso for necessário.

 

VELOCIDADE

Dizem as leis da física que velocidade é uma distância a dividir por um determinado período de tempo, portanto não existem muitas dúvidas sobre como a explicar, mas isso não significa que se possa ensinar.

Um erro comum entre muitos pilotos é treinarem somente para tentar ser mais rápidos, porque velocidade, não se ensina, e portanto, não se treina.

Não me levem a mal, é óbvio que até certo ponto se trabalha com treinos específicos, mas esses devem ser utilizados de uma forma particular, pois ninguém vai conseguir ser consistentemente mais rápido só porque se forçou a enrolar o punho um pouco mais todos os dias.

E a palavra-chave aqui é consistência.

Todos já tivemos aqueles dias em que tudo corre da melhor maneira e somos reis e senhores da nossa mota, mas esses tendem a ser poucos e difíceis de replicar.

Um James Stewart por exemplo, tinha claramente dias desses, mas nos outros, era consistentemente rápido na mesma, e é isso que queremos, ser consistentemente rápidos.

 

Imagem de motocrossactionmag.comImagem de motocrossactionmag.com

 

A forma de o atingir é simples, mas não passa por tentar ser mais rápido.

Passa pelo aumento gradual da nossa zona de conforto pelo aumento da nossa capacidade de aplicar técnica.

Ser mais consistente com a técnica permite que as nossas curvas, saltos, whoops, ou secções de areia comecem a ser passadas sempre de forma consistentemente controlada.

Isso por sua vez cria o efeito de abrandar o tempo, por estarmos a conduzir em piloto automático.

Se no carro no caminho para casa esse “tempo extra” nos permite ir a falar, a ajustar o radio, e a procurar o radar mais próximo, tudo ao mesmo tempo, a treinar permite-nos sem esforço e muitas vezes de forma natural aumentar a nossa velocidade.

A velocidade da primeira vez que andaram de mota e da décima não foi igual, e para a maioria de nós, a única coisa que mudou foi termos ficado mais confortáveis, não obrigatoriamente termos tentado ser mais rápidos de uma forma geral.

Isso significa que numa mota, velocidade é um subproduto e não um resultado final directo.

 

Imagem de thumpertalk.comImagem de thumpertalk.com

 

Com isso em mente, se queres ser mais rápido, torna-te primeiro mais consistente por dominares melhor a tua técnica, e a velocidade vai aparecer.

Por isso, no que diz respeito a situações que não se ensinam, faz o teu trabalho de casa, acredita em ti próprio e nas tuas capacidades, e os resultados vão aparecer mais depressa do que podes esperar.

 

Your riding buddy is trying to kill you!

 


1 comentário

  • Victor coelho

    Muito bom, não sou piloto mas aprecio cada pormenor descrito, pura verdade.
    Boas festas

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