Entender tração e pneus em motas

Entender tração e pneus em motas

Todos já ouvimos falar de tração, e muito provavelmente já utilizamos essa mesma palavra para descrever uma ou outra situação.
 
Ainda assim, sabemos mesmo o que estamos a dizer quando falamos de tração, e caso não estejamos totalmente conhecedores, ganhamos algo em mudar essa realidade?
 
Neste artigo vamos falar de tração em motas, e explicar os básicos que vão fazer de ti um piloto mais rápido, mais seguro, e mais conhecedor do que se passa debaixo dos teus pés.
 

UM ARTIGO NÃO É UMA AULA 

Tudo na vida têm de ser visto em contexto, e este nosso artigo não é diferente.
 
A ideia de todos os artigos que escrevo para a BN é a de vos passar tanta informação quanto possível de uma forma percetível e replicável.
 
Ler e aprender para testar sozinho é excelente, mas nunca é substituto de formação profissional individual, ou até mesmo em grupo. Foto de aula BN EnduroCamp
Aprender informação para testar sozinho é excelente, mas nunca é substituto de formação profissional individual, ou até mesmo em grupo.
Foto de aula BN EnduroCamp
 
O que eu quero dizer com isso é que apesar de tentar ser sempre o tão preciso e concreto quanto possível, por vezes tenho a necessidade de simplificar certos conceitos ou explicações de forma a mais facilmente passar uma ideia ou explicação.
 
Faço-o porque no fim do dia estes artigos não são aulas ou dissertações académicas.
 
São antes uma forma de vos permitir compreender um pouco melhor o nosso mundo das duas rodas, ou pelo menos, apresentar conceitos para muitos desconhecidos para assim poderem aprender mais sobre eles se assim o desejarem.
 
Com isso em mente, esta breve introdução serve como pedido de desculpas aos mais aficionados pelo detalhe, pois no tópico de hoje, tração, vou-me ver obrigado a fazer isso mesmo, simplificar conceitos, e de forma algo blasé, pedir-vos para aceitarem outros como verdades diretas.
 
Isto porque o intuito deste artigo é dar-vos mais ferramentas para compreender melhor dinâmica de condução, algo que vos vais possibilitar tirar mais das explicações técnicas de outros artigos, e até mesmo de treinos que possam fazer, seja a nível pessoal ou com profissionais como eu.
 

O CIRCULO DE KAMM 

O desenvolvimento de pneus é uma industria de milhares de milhões, e entre as razões que fazem disso uma realidade temos a complexidade do funcionamento de um pneu.
 
Temperatura, pressão, propriedades da borracha usada, propriedades do tipo de terreno onde o pneu está a rolar, deformação do pneu em uso, peso da mota, peso do piloto, dimensões do pneu, a lista de variáveis é imensa.
 
Equipas profissionais têm engenheiros dedicados a pneus porque a complexidade do tema assim o exige. Imagem via ultimatemotorcycling.com
Equipas profissionais têm engenheiros dedicados a pneus porque a complexidade do tema assim o exige.
Imagem via ultimatemotorcycling.com
 
Obviamente, com uma lista de variáveis tão extensa, qualquer pequena alteração têm um impacto imenso no resultado final.
 
Essa é a razão pela qual vamos deixar a necessidade de compreender cada uma dessas variáveis a fundo para quem desenvolve pneus, e deixar para nós apenas o suminho desta laranja.
 
Em termos práticos isso significa entendermos alguns conceitos que vão mudar a nossa forma de ver pneus e entender tração.
 
O primeiro conceito a entender é o de quanto podemos ou não abusar de um pneu antes dele começar a derrapar.
 
A forma mais simples de compreender esse conceito é utilizando o circulo de Kamm, ou o circulo de tração, ou qualquer um dos outros nomes que lhe é atribuído.
 
De uma forma geral temos de considerar um circulo dividido em quarto, em que temos na periferia do circulo os máximos de capacidade de aceleração, travagem, curva para a esquerda, e curva para a direita.
 
Assim podemos facilmente desenhar limites e compreender atitudes da mota de uma forma visual.
 
Vamos para isso utilizar um exemplo de uma curva em aceleração para a direita.
 
Circulo de tração ou circulo de Kamm.
Imagem via BN EnduroCamp
 
Compreendemos assim que nesta situação se queremos acelerar muito mais vamos ser obrigados a reduzir o ângulo da curva para não sairmos fora do circulo, o que significaria, sair fora da zona de tração e começar a derrapar.
 
Vamos então simular uma aplicação prática desta explicação.
 
Se tivermos uma curva a 180º relativamente apertada, uma forma de o fazer será com um pivot em que a roda da frente faz a trajetória mais junto ao apex, e a roda de trás faz a trajetória mais afastada do apex.
 
Nesse caso, o circulo de Kamm da roda da frente estará totalmente dentro da zona de tração, e o da roda de trás, vai estar fora da zona de tração estando portanto, a derrapar.
 
Desenho exemplificativo de uma curva em pivot, parte um.
Imagem BN EnduroCamp
 

AS COISAS NÃO SÃO ASSIM TÃO SIMPLES 

As coisas são no entanto um pouco mais complexas, uma vez que o limite do circulo de Kamm não é de facto uma linha fixa.
 
Na realidade, o limite do circulo é mais semelhante a um sombreado, uma vez que a tração não se perde de um segundo para o outro, sendo uma perda relativamente progressiva.
 
Essa progressividade é o que permite a pilotos de topo viver no limite da tração, uma vez que com um pouco de treino e a forma como os pneus de hoje em dia são construídos, se torna possível sentir quando o pneu começa a derrapar.
 
Outra realidade importante de compreender é que o circulo de tração também não é um circulo, mas sim algo mais semelhante a uma oval.
 
Isto acontece porque os pneus tendem a ter mais capacidade de travagem e de aceleração do que de curva, algo que entre outros factores têm a ver com a deformação física do pneu em carga.
 
Se introduzirmos estas novas variantes no nosso exemplo anterior, obtemos um gráfico muito mais semelhante ao seguinte.
 
Desenho exemplificativo de uma curva em pivot, parte dois.
Imagem BN EnduroCamp
 

O TAMANHO IMPORTA

Há quem diga que o tamanho não interessa, mas sim o que se faz com ele, neste caso, tamanho interessa, e o que se faz com ele também.
 
Isto porque a fricção de um pneu de borracha é muito particular ao ser um conjunto de adesividade, de deformação, e de desgaste.
 
Adesividade é um conceito relativamente simples, basta pensar em cola, e lembrar que um pneu frio têm menos adesividade do que um pneu quente, por exemplo.
 
Quanto a deformação, retirar pressão é uma técnica muito conhecida entre amantes de fora-de-estrada, por permitir ao pneu deformar e aumentar o tamanho da área de contacto com o solo.
 
Na prática, como temos uma borracha com propriedades adesivas agora com uma maior área de contacto com o solo, temos então, mais tração.
 
No entanto, como retirar ou adicionar pressão em andamento para poder ter mais ou menos área de contacto não é possível, o que podemos fazer é mexer o nosso corpo, movendo o nosso peso.
 
Ao pormos mais ou menos peso em cada roda, ou em cada peseira, estamos não só a ativamente alterar a área de contacto dos nossos pneus em andamento, mas também a alterar a pressão desse contacto.
 
Diferença entre modificar pressão dos pneus e alterar a carga.
Imagem BN EnduroCamp
 
Assim sendo, ao movimentarmos o nosso peso na mota conseguimos em andamento alterar o Circulo de Kamm possível.
 
Voltando ao exemplo da curva em pivot, de uma forma geral, a posição corporal a adotar é a de chegar o corpo para a frente aumentando a carga sobre a roda da frente, e reduzindo o peso sobre a roda de trás.
 
Esta visão simplista da atitude corporal tira partido da capacidade de deformação dos pneus em carga, o que efetivamente funciona por aumentar ou diminuir a área de contacto de cada pneu.
 
É importante no entanto compreender que existe um limite físico para o peso aplicado e o ganho de tração, o que significa que meter uma tonelada de força no pneu não vai resultar numa tonelada de tração.
 
Dito isto, se voltarmos a analisar o circulo de Kamm para a nossa curva de 180º, temos agora uma visão muito mais completa do que está a acontecer aos nossos pneus durante esta manobra.
 
Desenho exemplificativo de uma curva em pivot, parte três.
Imagem BN EnduroCamp
 
 

DESGASTE

Não interessa se estamos a falar de alcatrão ou de terra, o solo é mais rijo que os nossos pneus, razão pela qual os pneus se desgastam e o terreno tende a manter-se.
 
Assim sendo, vou-vos pedir para imaginarem o solo a nível microscópico como uma quantidade de facas viradas para cima, a espetar o pneu cada vez que os dois entram em contacto.
 
Vou-vos igualmente pedir para manter em mente que pneus são viscoelásticos, o que significa que recuperam a sua forma original.
 
Se já alguma vez espetaste a unha num pneu para ver a sua rigidez, então sabes que a marca da unha desaparece, ainda que nuns pneus isso aconteça mais rápido do que noutros.
 

A diferença de energia perdia durante o processo de compressão e recuperação é conhecida como histerese.

Um pneu com mais histerese vai-se deformar de uma forma mais exata com a estrada, agarrando melhor as “facas” do solo, promovendo tração, mas aumentando o desgaste.

 
Exemplificação de histerese em pneus, sendo que pneus com mais histerese tendem a ter mais tração.
Imagem BN EnduroCamp
 
Com a imagem visual das facas e a compreensão do conceito de histerese em mente, torna-se relativamente simples de compreender porque é que um pneu mais mole têm mais tração, mas também porque dura menos que um pneu mais rijo.
 

PISO DO PNEU 

O objetivo dos pneus é simples, garantir que a nossa mota tem um ponto de contacto com o solo, promovendo tração, o que nos permite aplicar movimento à mota, ou por outras palavras, ganhar ou perder velocidade.
 
Essa tarefa pode parecer simples desde que a mota tenha as rodas no chão, no entanto, todos sabemos que isso não é verdade.
 
Água provoca aquaplaning, óleos, tintas de pintura, tampas de esgoto, areia, pedra solta, e outras tantas situações podiam ser enunciadas como exemplos de coisas que impedem que o nosso pneu toque no solo.
 
Assim sendo, aparece a necessidade de criar rastos, ou piso nos pneus.
 
Por outras palavras, a necessidade de um desenho na carcaça do pneu que o permita limpar o piso debaixo de si próprio de forma a garantir que parte do pneu entra de facto em contacto com o solo rígido.
 
Exemplo do pneu a limpar o solo debaixo de si próprio garantindo contacto com o chão. Imagem BN EnduroCamp
Exemplo do pneu a limpar o solo debaixo de si próprio garantindo contacto com o chão.
Imagem BN EnduroCamp
 
A especificidade com que cada tipo de rasto é criado é a razão pela qual pneus de estrada não se dão bem fora de estrada, com os seus sulcos desenhados para repelir água, e não terra ou pedras, por exemplo.
 

DINÂMICA DO PNEU EM CURVA

Se há imagem que todos temos do mundo do motociclismo, é a de motas de MotoGP a entrar numa curva a derrapar e todas de lado, no entanto, será que os nossos olhos nos estão a enganar?
 
Na realidade, a resposta é sim e não, e o culpado é o ângulo de derrapagem.
 
Este fenómeno relativamente complexo engloba vários conceitos diferentes, tornando-se provavelmente o fenómeno mais complicado de compreender, mas não menos importante de aprender e dominar.
 
O angulo de inclinação, tal como as dimensões do pneu são essenciais para definir o angulo de derrapagem, sendo que em termos gerais pneus mais largos requerem mais inclinação do que pneus mais finos para a mesma velocidade e curva. <br /> Imagem Pinterest
O pneu de trás em competição tende a manter um ângulo de derrapagem limite durante grande parte da curva, maximizando a velocidade possível.
Imagem Pinterest
 
Este fenómeno dita que o ângulo de derrapagem é o ângulo criado entre a direção para onde o pneu está a apontar e a direção para onde a mota está efetivamente a ir.
 
Como exemplo, nós ao curvar, criamos um ângulo de derrapagem, no entanto, uma rajada de vento que puxe a mota para o lado, cria de igual forma um ângulo de derrapagem.
 
Assim sendo, temos de aceitar que sempre que uma mota vira, seja propositadamente ou não, cria um ângulo de derrapagem superior a zero graus.
 
Este conceito torna-se mais complexo quando analisamos a fundo a área de contacto do pneu em reta, uma vez que pela deformação natural do mesmo contra o solo temos também aqui uma área de derrapagem.
 
Assim, além do ângulo de derrapagem, temos igualmente uma área de derrapagem, conceitos semelhantes e simultâneos, mas não equiparáveis.
 
Para finalizar temos o cone de curva, que para todos os efeitos práticos dita o ângulo de inclinação necessário para se fazer uma determinada curva com um determinado perfil de pneu e velocidade.
 
Representação simplificada do cone de curva formado pelo pneu inclinado para uma curva.  Devido ao cone de curva, em termos gerais, pneus mais largos requerem mais inclinação do que pneus mais finos para a mesma velocidade e curva.
Imagem BN EnduroCamp
 
Ainda assim, e por mais complexo que tudo isto seja, podemos de uma forma relativamente simples compreender visualmente estes três conceitos cruciais para entender tração em curva.
 
O controlo destes conceitos dita se o piloto se mantém no limite da tração, maximizando a sua velocidade em curva, ou se o ultrapassa, e entra numa derrapagem pura, ficando numa posição competitivamente difícil e potencialmente perigosa.
 

A zona de escorregamento é meramente exemplificativa já que a sua localização exata é ainda motivo de debate entre peritos.
Imagem BN EnduroCamp
 
 

TU ÉS ÚNICO

Depois de toda esta explicação, muitos de vocês devem-se estar a perguntar o que fazer agora com esta informação, e essa é uma pergunta válida, e de resposta simples.
 
Ao compreendermos os conceitos básicos explicados, compreendemos mais facilmente o que frases como “põem o peso para a frente” querem dizer, tornado a sua execução mais intuitiva e controlada.
 
Outra benesse, é a compreensão de que um pouco de derrapagem pode significar estar a maximizar velocidade, e que isso não deve ser confundido com uma derrapagem total, que pode parecer espetacular em fotos, mas reduz drasticamente performance.
 
A estes benefícios, adicionaria ainda um extremamente importante, a compreensão de que não existe “o melhor pneu” que tantos procuram nas redes sociais e grupos de amigos.
 
O melhor pneu depende de imensos fatores, sendo que o maior diferenciador és mesmo tu.
 
O tipo de uso que vais dar ao pneu, em que condições, quais são as tuas expectativas, e até mesmo o teu tipo de condução vão drasticamente afetar a performance de qualquer pneu que te chegue ás mãos.
 
Essa é a razão pela qual um pneu que para uns é brilhante, é apelidado como criminoso por outros.
 
Por isso, agora que tens alguns conhecimentos base, é hora de tirares mais partido da informação que já tens e tornares-te um piloto mais seguro, rápido e consistente por isso, seja a treinar sozinho, ou com a ajuda de um treinador profissional.

 

Your riding buddy is trying to kill you!


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