A idade é um número

A idade é um número

Sou um grande fã deste nosso desporto da aventura, acho que isso nesta fase é relativamente inegável, mas o porquê pode ser mais ambíguo.

Para os efeitos do artigo de hoje, vou-me focar num ponto-chave, naquele que determina que este desporto dá para todos.

Dá para gordos, magros, altos, baixos, novos e velhos. Com muito ou pouco dinheiro, com mais ou menos juízo, até com mais ou menos jeito.

A terra, e principalmente dentro do capacete, é um grande equalizador, e eu adoro isso. Mas terminar a minha autoanálise em esquema de carta de amor por aqui seria, claro está, redutor.

Isto porque, apesar de continuar a insistir que a terra é um equalizador de oportunidade, não é um equalizador de capacidade, e isso é uma distinção crítica.

Se por um lado alguém mais fisicamente preparado terá sempre mais facilidade, porque afinal isto é um desporto, alguém mais baixo tende a ter mais dificuldades num mundo onde as motas tendem a não ser desenhadas para a sua estatura - muito além do tamanho de perna.

O mesmo pode, e deve, ser aplicado à idade.

Apesar de, tendencialmente, os meus alunos andarem entre os 30 e os 50 anos, volta e meia recebo contactos de potenciais alunos com mais algumas primaveras, alguns já dentro, ou a roçar os 70, e, como instrutor ou simplesmente ser humano com algum bom senso, vejo-me obrigado a ter uma conversa bem diferente com estes aventureiros quando comparada com a que costumo ter.

Por isso, hoje gostava de analisar o limite mais alto da idade para se fazer parte deste nosso desporto.

 

A IDADE É SÓ UM NÚMERO

Se quando era mais novo me agarrava ao conceito de a idade ser só um número para entrar em bares, fazer parte de certas conversas ou tentar tirar um sorriso a esta ou aquela miúda que me chamava de puto, hoje sinto-me obrigado a ver esse chavão com mais nuance.

Por um lado, aos 65, batemos num ponto onde as melhorias físicas são muito mais difíceis do que eram no passado, e onde o histórico físico pesa mais do que a boa vontade futura. Não quero com isto dizer que estamos prontos para bater as botas - longe disso, e principalmente nos dias de hoje - mas temos de aceitar algumas realidades.

Os cuidados (ou falta deles) que tivemos connosco nas últimas seis décadas já mais do que estão prontos a ser colhidos, e se mudanças ainda podem - e devem - ser feitas, o retorno está longe do que seria possível nos nossos 20 ou 30.

Isso significa que alguém que foi atleta a vida toda ainda tem muito no tanque aos 65; quem geriu resistência entre o sofá e o frigorífico vai ter mais problemas neste desporto que é incrivelmente físico.

Isto porque com a idade temos uma perda natural de equilíbrio e de reatividade, muito ligada ao enfraquecimento progressivo das fibras musculares do tipo 2A — responsáveis pela força e explosão nos movimentos rápidos, que promovem reequilíbrio — um processo que começa logo por volta dos 30 anos se não treinarmos força e explosão. Num ambiente como o fora de estrada, onde as correções instantâneas são o prato de cada dia, isso não pode nem deve ser desconsiderado.

Isso não limita de imediato a possibilidade de se fazer terra, mas deve drasticamente gerir expectativas.

Por outras palavras, distância, tipo de andamento e agressividade devem ser imediatamente postos em perspetiva. E, se não por capacidade física, por uma questão de gestão de lesões.

Este é um desporto onde cair faz parte, e por muito em forma que se esteja, é inegável alguma fragilidade a partir de certas idades, principalmente em termos musculares e de densidade óssea - principalmente em mulheres.

Aliás, dados apontam para uma redução drástica da esperança média de vida após fraturas sérias (anca, fémur) a partir dos 70 anos. Mesmo em pessoas em excelente forma física para a idade, a perda de mobilidade e massa muscular durante a recuperação torna o regresso à vida normal extremamente difícil

Por isso sim, a idade é só um número, mas os números têm relevância.

 

EXISTEM OPÇÕES

No entanto, isso não dita que a vontade de aprender a levantar pó deva cair imediatamente por terra. Longe disso. Significa somente que devemos ajustar o que devemos fazer e como.

Primeiro que nada, devemos olhar para a nossa mota.

Se sou fã e promotor da ideia de motas grandes na terra - desde que se aceite o custo agregado que isso pode trazer - quando a idade aumenta, a mota deve diminuir, e não só em termos de tamanho, mas também de motor.

A parte do tamanho é sensivelmente clara: afinal, gerir 250 kg ou gerir 150 kg não é nem de perto nem de longe a mesma coisa, nem para alguém em forma nos seus 30 ou 40.

Por outro lado, o motor.

Se, com a pulga aos saltos a nível hormonal, uma relação de um-para-um em termos de peso/potência parece pouco, com a idade deve vir juízo, e a noção de que um punho enrolado na esperança de gerar algum movimento pode ser uma benesse.

Isso pode fazer parecer que se na estrada se anda de 1200, na terra uma 450 é o mínimo, mas na realidade uma 450 ou 250 são cilindradas de competição, e isso é inegável no seu trato.

Algo como uma CRF300L, uma Voge 300, uma DR350 ou até mesmo uma WR250R - se conseguirem encontrar uma - podem ser excelentes escolhas. Curiosamente, acredito estarmos a entrar numa era de ouro das pequenas adventure, por isso outras opções vão certamente inundar o mercado nos próximos anos.

Assim, a ideia não é escolher uma destas porque eu disse, mas considerar estes modelos introdutórios - ou nem tanto - como opções de baixo custo, baixo esforço e alto resultado para quando o físico não permite muito mais, ou para quando o queremos poupar sem nos limitarmos por completo.

Porque não façam confusão, podemos não ver nenhum destes modelos na grelha de partida de um Dakar ou de um Portalegre, mas isso só faz deles menos eficazes em competição, não incompetentes na terra. Um claro exemplo disso é que esta lógica para a idade também se pode aplicar a lesões. Eu próprio ando de CRF300L por causa delas, e estou longe das limitações dos 70.

Esta realidade é claramente visível naqueles que, apesar de já contarem com seis ou sete décadas, sempre fizeram terra e, com motas como estas - e alguns com algumas bem maiores - ainda mantêm passo com pilotos bem mais novos, quer em velocidade, quer em resistência em distância. Isso demonstra não só o que se pode fazer ao manter um corpo ativo, principalmente neste desporto, como ao fazer certas escolhas corretas como as que estamos a falar aqui.

Outro ponto a ter em conta é o objetivo geral.

Se andar sozinho na terra é sempre uma ideia duvidosa, a partir de certa idade - ou limitação física - deve ser uma clara regra de go no-go.

Com a mota e o andamento certos, uma queda pode não limitar o futuro, mas levantar sozinho 120 ou 150 kg tem os seus preceitos. Por isso, dividir - ou mesmo delegar - esse trabalho com alguém é um bónus mais do que válido, que pode fazer a diferença no médio-longo prazo.

Outra hipótese é a própria escolha de desporto em si.

Terra não é só aventura, o que significa que fazer menos quilómetros em distância e adicionar algumas horas de mota num desporto como trial, por exemplo, pode complementar o sonho de levantar pó de uma forma muito realista e duradoura.

Assim, fica o conceito: dificilmente irei dizer a alguém que quer aprender a fazer terra que são demasiado velhos para isso, mas irei sempre ajudar a realisticamente navegar limitações e oferecer opções.

Sejam essas opções aprender a teoria e experimentar uma aula para aplicação de conceitos em estrada ou no ocasional estradão. Uma escolha de mota, andamento e percursos mais adequados a uma maior longevidade em duas rodas. Exercícios, tal como ajustes técnicos e ergonómicos específicos para suporte físico e longevidade. E, acima de tudo, um enorme sorriso por ver uma alma que não deixou um número tomar decisões por si.

Fora de estrada é um desporto incrível, nem que seja porque tem lugar para todos.


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