Os diferentes tipos de fora de estrada

Os diferentes tipos de fora de estrada

Eu diria que a maioria de nós como amantes de todo o terreno em duas rodas, consideramos o nosso desporto altamente inclusivo.
 
Dá para fazer com motas grandes ou pequenas, a dois ou quatro tempos, a gasolina ou elétricas, dá para ser feito dos 8 aos 80, e por participantes de qualquer género ou crença.
 
No entanto, acredito que existem alguns pontos de comunicação onde como comunidade podemos melhorar, e hoje, é exatamente sobre esses pontos que quero falar.
 

HÁ TERRA PARA TODOS OS GOSTOS

Apesar de acreditar que a comunidade das duas rodas fora de estrada é de uma forma geral extremamente unida, é relativamente comum encontrar-se em qualquer post online sobre um qualquer passeio, pelo menos um comentário a apontar que “isso não é fora de estrada”, ou algo semelhante.
 
Não é o objetivo deste artigo explicar porque é que esse tipo de comentário é socialmente prejudicial, mas é totalmente dentro do âmbito do que quero falar explicar porque é que esses comentários são simplistas, e ainda assim, de certa forma, compreensíveis.
 
Pode-se definir como estrada qualquer caminho alcatroado ou empedrado que vai de um ponto a outro, onde podem transitar veículos, pessoas, ou animais.



Imagens semelhantes a esta são um exemplo dos ainda muitos utilizadores de trilhos em Portugal. Imagem via vitormadeira.files.wordpress.com


Usando esta definição, fora de estrada é portanto todo e qualquer caminho que fuja a essa regra, ou seja, que não esteja alcatroado, empedrado, ou de uma forma geral, cuidado e mantido.

É então de salientar que a determinação do que é fora de estrada é factual, e não emocional ou pessoal.

Assim, é tão fora de estrada o caminho que o Tio Manel faz a ir para da aldeia para o monte, como é o que qualquer piloto do Dakar faz ao cruzar as maiores dunas do planeta, e isso é importante manter em mente.
 
É importante porque nem todos os amantes ou utilizadores de fora de estrada querem competir no Dakar, e isso são excelentes noticias que devem ser abraçadas e incentivadas.
 
Nenhum desporto consegue existir somente no seu expoente máximo, por isso, quando alguém que gosta de hard enduro diz a alguém que está a fazer ADV que o terreno onde eles estão não é fora de estrada, por exemplo, isso não só reflete pouca empatia, como passa a ideia de que o que aquela pessoa está a fazer não é válido.
 
Igualmente criticável, são comentários a indicar que esta ou aquela mota são um desperdício para o terreno onde estão a ser utilizadas.
 
Mais uma vez, o nível de empatia e respeito pelo próximo que é demonstrado nesses comentários é preocupante, pouco construtivo, e indicador de uma falta de visão global do nosso desporto.
 


É irrelevante o tipo de mota ou a velocidade a que se podem fazer estes estradões, tudo o que conta é o prazer que o piloto tirou dessa experiencia. Imagem OneWheelDrive.net


Ninguém faz a sua primeira experiência de todo o terreno no Erzberg, não começamos todos a fazer terra com uma DT aos 14 anos, nem temos todos o mesmo poder de compra.

Na realidade, o único ponto que nos une a todos é o amor por levantar pó.
 
Por isso, torna-se importante manter em mente que há todo o terreno para todos os gostos, carteiras, e níveis de experiência, tal como que mais depressa vamos incentivar alguém a experimentar terrenos e motas diferentes com ajuda e compaixão, do que a fazer comparações com aquilo que nós gostamos e conseguimos fazer a nível pessoal.
 
Esse tipo de respeito e incentivo construtivo faz a diferença entre uma comunidade crescente e saudável, e uma dividida e estagnada na sua evolução.

CLASSIFICAÇÕES DE TERRENOS

Nunca fui um grande aluno a Português ao longo da vida, e só muitos anos após ter terminado o meu percurso académico é que comecei a dar valor a alguns pontos linguísticos, entre eles, o peso das palavras.
 
O dicionário não é um livro volumoso por capricho, mas sim porque existem imensas palavras diferentes, e todas elas com significados únicos.
 
Mesmo sinónimos, que sendo palavras semelhantes e de certa forma intermutáveis entre si, apresentam particularidades que permitem que uma ou outra se adaptem melhor a cada situação.
 
No entanto, no mundo do fora de estrada, facilmente damos por nós linguisticamente limitados quando tentamos definir terrenos, sendo forçados a regularmente recorrer a chavões como “difícil” ou “fácil”.


Areia, é dos tipos de terreno que para uns é de dificuldade relativa, para outros, é intransponível, mesmo nos trajetos mais curtos. Designar um trajeto com areia como fácil ou difícil é portanto extremamente redutor e enganador. Imagem Adv Pulse


Essas definições são extremamente falíveis, pois não só não descrevem para quem é que um determinado tipo de terreno é difícil ou fácil, como também deixam de lado uma descrição das características do mesmo.
 
Assim, e de forma a tentar evitar a típica situação de se chegar a um passeio “fácil” e partir qualquer coisa porque “afinal não era assim tão fácil”, vemo-nos obrigados a criar a nossa própria linguagem.
 
Ainda que não disseminados, existem alguns sistemas de classificações de terrenos, não só de complexidades distintas, mas igualmente aplicáveis aos mais diferentes tipos de disciplinas, desde do ADV ao hard enduro.
 
Para mim, eu gosto de usar o que desenvolvemos na BN EnduroCamp, que ainda que tenha sido originalmente desenvolvido para motas acima de 650cc em regime de aventura, facilmente pode ser utilizado pela larga maioria de motas em andamentos lúdicos, tornando-se somente mais limitado para enduro ou hard enduro.
 
Ainda assim, havendo vontade comunitária, facilmente se podem criar classificações adicionais para estas disciplinas que têm características particulares.
 
O nosso sistema baseia-se então em três pontos principais; considerações gerais onde definimos algumas regras básicas, a classificação do piloto em três estados evolutivos, e a classificação do terreno em si em cinco classes de dificuldade.

Para todas as classes temos um descrição do tipo de dificuldades de cada uma, tal como um video exemplificativo para ajudar a que cada classe seja o tão clara quanto possível.

Por isso, se queres comunicar melhor com os teus amigos, queres recomendar uma linguagem mais precisa aos organizadores dos passeios que fazes, ou até mesmo aplicar este método de classificação de terrenos nos teus próprios passeios, lê com atenção o nosso sistema, e partilha-o tanto quanto possível.
 
Vamos todos ganhar ao conseguir falar a mesma língua e comunicar exatamente o que queremos dizer quando nos referimos a fora de estrada.

MODIFICAÇÕES NAS MOTAS

Assumindo que todos os que estão a ler este artigo têm carta de carro, é provável que a maioria de vocês se lembre da primeira coisa que vos foi ensinada na vossa primeira aula de condução, como ajustar o banco e os espelhos antes de arrancar.
 


O site http://cycle-ergo.com é um excelente recurso para descobrir se é necessário modificações ergonómicos em qualquer mota, ou somente ajustes, seja em motas de enduro, estrada, ou ADV. Imagem cycle-ergo.com e Adv Pulse


Nos dias de hoje, e em carros mais modernos, já é incluído o ajuste do volante e dos pedais, algo que permite ao condutor melhorar ainda mais o seu conforto e capacidade de controlo do veiculo.
 
Nas motas, por outro lado, é-nos quase impossível esse tipo de afinação sem recorrermos a alterações.
 
Vamos assumir o mesmo modelo de mota comprada no mesmo dia por uma pessoa com 1.70m, e uma com 2.00m.
 
Desde a dimensão do guiador que poderá ter de ser ajustado ao tamanho dos braços de cada um, até ao tipo de banco, posição das peseiras, altura do guiador em relação ás mesas, e até mesmo altura da mota ao solo, tudo são pontos que devem de ser tidos em conta para podermos, tal como no carro, obter uma posição confortável e segura de condução.
 
Assim, e se logo á cabeça a maioria das motas têm de sofrer alterações de forma a poderem ser operadas em segurança, mais alterações podem ainda ter de vir a sofrer para poderem ser seguras e eficazes nos diferentes tipos de terrenos existentes.
 
Afinal de contas, nenhuma mota foi desenhada para fazer tudo excecionalmente bem, nem para ser diretamente perfeita para todos os tamanhos de condutor.
 
Com isso em mente, após termos considerado as alterações ergonómicas necessárias, devemos considerar onde e de que forma vamos utilizar a nossa mota.
 
Se, por exemplo, não quisermos fazer nada mais complexo do que de terrenos de Classe 3 com uma mota de ADV, provável iremos somente necessitar de adequar os nossos pneus.
 
Por outro lado, se com essa mesma mota estivermos a apontar a terrenos de Classe 5, então além das alterações ergonómicas necessárias, poderemos ter de considerar não só proteções, tal como alterações a nível de suspensões, por exemplo.
 


Terrenos de Classe 5 podem ser transpostos por motas de maior porte no seu estado original, no entanto, é normal ver-se modificações naquelas que o fazem regularmente. Foto OneWheelDrive.net


Assim, e deixando completamente de lado quer a legalidade destas alterações quer as escolhas estéticas de cada um, em esquema de resumo, é preciso manter em mente que quase todas as motas requerem modificações para ser conduzidas em segurança, e que para fora de estrada, podem ainda ter de ser adaptadas aos tipos de terrenos onde vão andar.
 
Por tudo isso, conseguirmos definir claramente o tipo de terrenos por onde passamos vai-nos não só ajudar a ter conversas mais coerentes, mas vai também ajudar a adequadamente planear as alterações que a nossa mota poderá necessitar para a função que queremos que ela cumpra.
 
Essa atitude vai trazer muito mais frutos do que simplesmente copiar a mota do vizinho, que por mais bonita que esteja, pode estar preparada para algo que não serve minimamente o nosso propósito pessoal.

FORMAÇÃO E INFORMAÇÃO

É-me quase impossível como instrutor de fora de estrada escrever este artigo sem falar em formação, e por formação, diga-se, aprendizagem comunitária.
 
O ser humano, como espécie, apresenta uma evolução cognitiva exponencial porque ao contrario de outras espécies, cada geração começa a desenvolver-se a partir do conhecimento de todas as outras que vieram antes.
 
Os motores que equipam as nossas motas hoje em dia, por exemplo, são o produto de um desenvolvimento feito ao longo de quase 200 anos, com cada geração de inovadores a basear-se nos conhecimentos teóricos e práticos adquiridos por quem veio antes de si.
 


Sem criações como o motor Otto e Lenoir pelos anos de 1860, os nossos motores de combustão de hoje em dia não seriam possíveis. Imagem stationroadsteam.com


Infelizmente, no nosso mundo das duas rodas fora de estrada, como pilotos lúdicos ou competitivos, tendemos a tentar aprender sozinhos, ou com recurso a outros que tendo escolhido o mesmo processo, se encontrem mais avançados no mesmo.

Se isso é problemático num desporto em que muitas técnicas são contraintuitivas, é igualmente a razão pela qual se vê pouca diferença e evolução no tipo de erros técnicos cometidos por pilotos de várias gerações diferentes.
 
Felizmente, e com a quantidade de excelente informação disponível hoje em dia, têm-se assistido a um crescente número de pilotos a quebrar essa tendência do passado, tal como se vê a disseminação de informações para lá das técnicas de condução, tal como as de classificações de terrenos.
 
Por isso, e de forma a podermos estar cada vez mais seguros, podermos continuar a acompanhar a evolução das nossas motas, e podermos tirar o máximo proveito de qual quer que seja o tipo de terreno onde gostamos de andar, formação e informação continuas tornam-se essenciais.
 
Essa informação é o que nos vai permitir ir buscar os conhecimentos práticos e teóricos dos que vieram antes de nós, e como comunidade, continuar evolutivamente a dar passos em frente em vez de passos para o lado.
 
É igualmente o que nos vai permitir individualmente recomendar formação a outros, e é o que nos vai permitir aprender mais sobre estes e outros tópicos que vão muito além de técnicas de condução puras.
 
Por isso não percas tempo a tentar reinventar a roda sozinho ou com os teus amigos, investe em formação, procura informação com bases práticas e teóricas fundamentadas, e começa mais rapidamente a tirar mais de ti, da tua mota, e do teu desporto.
 

 

Your riding buddy is trying to kill you!


2 comments

  • Zé Duarte

    Muito obrigado pelas palavras Herlander! ✌️🏍

  • Herlander Aguiar

    Mais uma vez, acho que o artigo está muito completo e concordo bem absoluto. Parabéns pelo excelente trabalho.

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