Como aprender a andar de mota no sofá
Tal como muitos de vocês, quando comecei a andar de mota fora de estrada, as minhas saídas não eram tão frequentes quanto eu gostaria.
Ainda assim, e com aventuras por vezes separadas por semanas e meses, era comum ouvir vozes no grupo a dizer que parecia que eu tinha aprendido a andar na terra sentando no sofá de casa, tal era a diferença evolutiva entre passeios.
Com isso em mente fica a pergunta; será que é de facto possível desenvolver técnica de condução sem andar de mota, seja isso em regime lúdico, ou competitivo?
A TÉCNICA DE SCHRÖDINGER
Por definição, o ser humano têm a difícil tentação de só querer acreditar no que consegue ver e sentir, mesmo que esses inputs tenham sido propositadamente adulterados, como acontece no caso da magia.
Ai, os artistas escolhem deturpar a realidade á sua vontade, dando ao nosso cérebro exatamente o que ele precisa para acreditar na qualquer historia que lhe está a ser apresentada.
Para nós, no mundo das duas rodas, o conceito mantém-se inalterado, uma vez que o nosso cérebro se apresenta como um sistema de recolha de inputs que podem ser manipulados e trabalhados, tal como no mundo da magia.
Assim, as técnicas de trabalho de que iremos falar tomam partido desse mesmo principio, permitindo-nos um continuo trabalho de melhoramento da memória de procedimento necessária para qualquer manobra a desenvolver na mota.
Para quem quiser, fica o link para este artigo cientifico muito interessante sobre o papel da memória de procedimento no desporto, desenvolvido pela Universidade de Colónia. Link para o artigo shorturl.at/ftE09
Temos então de pensar na ligação entre a informação que está a ser recolhida pelos nossos olhos, recebida e traduzida pelo nosso cérebro, e finalmente passada para os nossos músculos, como uma estrada.
No dia em que a começamos a construir, ou por outras palavras, no dia em que aprendemos uma qualquer técnica nova, é como se tivéssemos aberto um pequeno e pouco trabalhado caminho de cabras de informação.
No entanto, para garantir uma rápida e eximia aplicação da técnica, precisamos que a informação chegue o mais clara, rápido, e eficazmente possível aos nossos músculos, e isso requer um meio de transferência de dados mais semelhante a uma autoestrada, do que a um caminho de cabras.
Esta explicação é incrivelmente redutora e simplista do tipo trabalho cerebral e nervoso envolvido neste processo, mas como analogia visual resulta para demonstrar o objetivo dos nossos exercícios de sofá, que visam exatamente isso, melhorar a infraestrutura das nossas estradas de informação.
No entanto, esta analogia deixa de lado o grande problema dos treinos sem mota, e um que afasta muitos de sequer lhes dar o valor que têm como método de trabalho.
Isto porque estas técnicas funcionam um pouco como o gato de Shrödinger, até voltarmos á mota, nunca temos bem a certeza se desenvolvemos e aprendemos alguma coisa, ou não.
Ainda assim, quanto mais tempo dedicamos a este tipo de trabalho, mais essa duvida se dissipa, e mais valor damos a este recurso.
Na realidade, estas técnicas são tão valiosas que cada vez mais são utilizados por atletas de topo nos mais variados desportos.
VISUALIZAÇÃO
A melhor forma de abordar qualquer técnica em moldes de “TPC de sofá” é claramente criar uma base de aprendizagem de campo bastante sólida.
Isso quer dizer que de forma a podermos trabalhar e fortalecer os nossos “pathways” cerebrais, necessitamos que eles existam em primeiro lugar, e quanto mais completos forem em termos de qualidade e quantidade, melhor.
Por exemplo, se alguém se sentar no sofá a imaginar repetidamente como fazer uma égua na mota, muito provavelmente vai partir os dentes na primeira tentativa de campo, isto porque tudo o que fez, foi sonhar com um objetivo sobre o qual tem zero experiência prática ou conhecimento teórico.
Por outro lado, se estivermos a aplicar estas “técnicas de sofá” após pelo menos uma aula com um instrutor certificado para o efeito, ao termos criado uma forte e estruturada base de trabalho, o resultado final vai mudar drasticamente.
É impressionante ver a proximidade de tempos que mentalmente e fisicamente dividem as duas voltas, tal como prestar atenção á precisão das trocas de caixa. É igualmente importante ouvir o porque deste piloto ter decidido utilizar a técnica de visualização para melhorar a sua qualidade técnica. Vídeo via Instagram @indycar
Vamos assumir então uma curva apertada de 180 graus feita a baixa velocidade.
Por já termos feito esse exercício com um instrutor que nos deu todo o envolvimento teórico necessário, que demonstrou o exercício na prática, e que nos corrigiu e claramente apontou os pontos onde somos fortes, e os em que ainda precisamos de melhorar, temos agora um claro e definido plano de ataque.
Por outro lado, temos também a clara memória do que é o exercício bem feito, tal como a lembrança do que é uma má execução.
Isso significa que sabemos exatamente a pressão que fizemos na embraiagem, no travão, no acelerador, como o nosso corpo estava posicionado na mota, e toda uma panóplia mais de pontos de referencia que podemos recordar e usar.
Assim, podemos facilmente agarrar nesse conjuntos de dados, e literalmente visualizarmo-nos a cumprir o exercício, sendo brutalmente honestos connosco quanto ao resultado final.
Se na minha “volta mental” acelerei demais, então tenho de aceitar que posso não ter mais espaço, e que portanto, falhei o exercício.
Se travei em demasia na frente, tenho de aceitar que poderei cair por ter perdido controle.
O objetivo portanto não é sonhar com resultados, nem tão pouco fazer grandes alterações ao que no campo correu bem, o objetivo é repetir exaustivamente e de uma forma concentrada e consistente o exercício previamente bem executado, prestando muita atenção a qual foi a nossa atitude na altura para com a mota, e a resposta dela.
Sonhar não é o mesmo que visualizar, é crucial manter isso em mente para se poder tirar o máximo partido dos exercícios de visualização. mecgc.club
Por outras palavras, devemos visualizarmo-nos a repetidamente executar a melhor técnica possível dentro das nossas reais e conhecidas capacidades.
Da mesma maneira, agarrar na informação que estamos a utilizar para a analisar passo a passo em termos teóricos, ajuda em muito a compreender limites, e a traçar objetivos para o próximo treino de campo.
Esta técnica é tão eficaz que é amplamente utilizada por profissionais desde cirurgiões a pilotos de F1, onde de olhos fechados, simulam fisicamente cada gesto técnico a cada curva e reta, volta após volta.
A dada altura, o seu cérebro está tão saturado com essa informação, que quando ela é necessária, sai em moldes de piloto automático, permitindo que se tenha mais “espaço cerebral” para outras decisões, leituras, e adaptações.
FILMA-TE
Um passo importante para qualquer um que queira levar a sua evolução técnica a sério, passa por eliminar os erros de leitura cerebral que tendemos a impor a nós próprios.
Seja na mota ou fora dela, já todos tivemos pelo menos uma situação em que na nossa cabeça executamos perfeitamente um movimento, tenha este sido um mergulho para uma piscina, ou um derrapagem em cima da mota.
No entanto, quando captamos esses momentos em vídeo ou fotos, tendemos a ser surpreendidos com a diferença existente entre o que achamos que aconteceu, e o que realmente ficou registado para a posteridade.
Na mota, esse tipo de disparidades entre imagem cerebral e realidade acontecem regularmente, e podem gerar problemas complicados.
Se por uma lado, dá uma informação base errada aqueles que querem treinar visualização, por outro, a ideia de que algo foi bem executado a juntar ao facto do objetivo ter sido alcançado, força-nos a enganosamente acreditar que entendemos a fundo o movimento que aplicamos.
É inegável que a diferença entre espectativas, e até mesmo o que o nosso cérebro assumiu que fizemos, versus o que realmente aconteceu. Imagem de @ze_fuzzy via 9gag.com
Assim, torna-se importante criar um sistema de confirmação auxiliar, com um simples vídeo ou uma foto a fazerem maravilhas nesse departamento.
Com isso em mente, filma e fotografa tanto dos teus treinos quanto possível, e quando estás sem poder andar, ou mesmo adicionando este passo aos teus treinos regulares, analisa as imagens que recolheste.
Esta técnica é igualmente utilizada em treinos de topo, sendo transversal desde amadores a profissionais, e isto assim o é porque produz resultados incríveis, quem já teve aulas comigo, por exemplo, sabe bem que este é um recurso que uso regularmente.
No entanto, se não tivermos uma boa base teórica e prática que nos permita fazer um bom trabalho de analise, a utilização desta técnica de trabalho está destinada ao fracasso, por isso, as espectativas de sucesso na sua utilização devem ser ajustadas em fases iniciais de aprendizagem.
Ainda assim, apanhar dois ou três erros é sempre melhor do que nada, e se isso não chegar, muitos instrutores, como eu, têm todo o prazer em ajudar alunos com analise de fotos e vídeos em moldes de formação continua.
Esta ajuda, muitas vezes gratuita, ajuda a rapidamente oferecer a qualquer um uma perspetiva profissional do que podemos estar a fazer bem, ou mal.
ANALISA OS MELHORES
Como já vimos, analisar o nossos próprios movimentos é um excelente recurso, no entanto, isso não significa que autoanálise deva ser a única avaliação que fazemos, antes pelo contrario.
Na era digital em que vivemos, a facilidade com que encontramos vídeos e fotos dos melhores atletas do mundo é demasiada, pelo que se torna quase obrigatório o seu uso por parte de quem aprender mais.
Isso no entanto não quer dizer que todas as imagens de atletas de topo seja merecedoras da nossa atenção, não só por facilmente assoberbarem até o mais acérrimo fan, mas igualmente porque grande parte delas não nos vai trazer o valor que podemos pensar.
Isto porque ser-se muito rápido, ou até mesmo vencedor de trofeus, não significa que esse piloto seja exímio tecnicamente, e como tal, digno do tempo necessário para uma analise cuidada.
Esta técnica é tão utilizada que teve direito a um pequeno segmente no documentário TT3D Closer to the Edge (The Isle of Man Tourist Trophy), onde Guy Martin está a analisar corridas para escolher linhas e tentar fazer um plano de ataque para a sua próxima corrida.
É no entanto válida a ideia de que até esses pilotos merecem ser analisados como forma de entender o é que é possível fazer sem uma boa técnica, mas considero esse trabalho mais relevante para instrutores e treinadores do que para quem só procura melhorar a sua própria consistência.
Isso porque apesar desse tipo de trabalho ter claros benefícios, aponta maioritariamente problemas, e não demonstra diretamente soluções que se devam seguir, e como tal, pode facilmente gerar confusão e subsequentes problemas.
Dessa forma, escolher pilotos para analise que se destaquem pela sua consistência, pela sua capacidade de encontrar linhas que sistematicamente provam ser melhores do que as do outros, e que de uma forma geral “dão sempre espetáculo técnico” pela leveza com que executam movimentos, torna-se claramente mais benéfico.
Assim, seja pela analise em camara lenta dos seus movimentos, seja por parar sistematicamente vídeos para tentarmos compreender que linhas vão escolher e porque, vamos lentamente começar a colher os frutos do nosso trabalho.
Entre eles, podemos destacar o continuo reforço positivo que é para o cérebro ver e rever lentamente boas aplicações técnicas, mas também as opções que certas linhas e atitudes nos oferecem.
Isto porque ao vermos e entendermos porque é que certas linhas e escolhas técnicas são consistentemente escolhidas por pilotos melhores do que nós, abrimos uma panóplia de opções que poderíamos nunca ter pensado serem possíveis, saltando de certa forma a fase de tentativa e erro típica da descoberta empírica.
Essa é uma das razões pelas quais esta técnica é tão utilizada em moldes competitivos, pois permite uma avaliação cuidada da competição, tal como uma evolução clara e mais rápida de qualquer desporto.
TREINAR EM CASA NÃO DEIXA DE SER TREINAR
O grande problema destas técnicas que falamos é a falta de sinceridade e empenho com que muitos as abordam.
Se já referimos que sonhar que estamos a fazer qualquer coisa não resulta, analisar os nossos vídeos ou os de outros com a mesma descontração com que vemos uma corrida num bar com os amigos, também não.
É crucial não confundir ver corridas com o trabalho de analisar corridas. Esta simples mas errada confusão leva muitos a não conseguirem fazer estas técnicas funcionarem para eles. Imagem roadracingworld.com
Isso significa que para podermos tirar partido destes recursos, e de facto melhorar as nossas capacidades técnicas sem necessitarmos de estar fisicamente em cima da mota, precisamos na mesma de lhes dedicar tempo, concentração, e compromisso.
Com isso em mente, muitos perguntam porque devemos então dedicar um minuto que seja a pensar em andar de mota, em vez de efetivamente estarmos a gastar gasolina e pneus, uma pergunta para todos os efeitos, justa.
Se muitos, ou por estarem fisicamente afastados da mota por lesão, por exemplo, encontram neste tipo de técnicas uma ótima forma de manter e melhorar proficiência, para outros, torna-se simplesmente um método complementar de trabalho.
Nenhum bom atleta melhora consistentemente por somente repetir a sua arte até á exaustão.
Qualquer regime de treino de quem leva técnica a serio requer uma multitude de variantes, dentro e fora da mota, e estas, são somente algumas das que muitos escolhem adotar como método de se tornarem mais multifacetados, equilibrados, e consistentes.
Assim, sejas profissional á procura de uma qualquer vantagem sobre um adversário, ou um guerreiro de fim de semana á procura de maximizar a tua aprendizagem, lembra-te, existe muito que podes desenvolver na tua forma de conduzir sem nunca sequer precisares de sair do sofá.