A arte marcarada

A arte marcarada

Já muito se falou – eu incluído – que a eletrónica das motas modernas com capacidade de fazer terra é fixe... até um certo ponto. Hoje quero revisitar esse tema, mas com outro ângulo, baseado no que vi e vive desde 2012 como instrutor profissional.

LIMITES CLAROS

Apesar de me considerar purista, não sou um homem das cavernas, e isso convém ficar claro antes de avançarmos.

Eu não defendo que na terra devemos viver no passado, desligar tudo e fingir que a evolução nunca aconteceu. O que digo é outra coisa, é que a eletrónica tem o seu lugar, tem o seu valor, mas também tem os seus limites.

Assim, o real problema é que a linha entre a ajuda e o entrave da eletrónica moderna não é tão óbvia como parece, principalmente quando somos iniciados, ou experientes mas sem grandes objectivos de ser agressivos ou rápidos.

O ABS frontal, por exemplo, foi uma excelente adição ao mundo da terra. Eu, por exemplo, nas motas que tenho que o oferecem, nunca o desligo. Permite-me ir ao travão de mão cheia sem preocupações, sem ser intrusivo ao ponto de me roubar manobrabilidade. Há eletrónicas assim: discretas, úteis, alinhadas com a técnica.

Mas depois há o resto. E o resto, na prática, comporta-se muitas vezes como aquelas rodinhas que púnhamos na bicicleta para aprender a andar.

Sabemos que estão lá, relaxamos, arriscamos mais, mas nunca sabemos bem quando vão tocar no chão. Isso, até evoluirmos ao ponto de passarem a tocar constantemente, limitando-nos no que conseguimos fazer dali para a frente.

Na mota acontece o mesmo: no início a eletrónica até pode ajudar, mas com a nossa evolução como pilotos – assumindo que ela existe, o que não é sempre garantido – a eletrónica tende a começar a interferir mais do que devia. O controlo de tração que corta potência a meio de uma subida técnica. O anti-wheelie que bloqueia uma passagem de um obstáculo. O ABS traseiro que impede uma boa travagem de emergência ou um brake slide para uma curva. Exemplos não faltam.

Então, e como com as rodinhas, quanto mais nos apoiamos nelas, menos tendemos a desenvolver aquilo que realmente interessa. Curiosamente, aí existiu uma clara evolução.

Basta olhar para os nossos filhos ou netos, hoje, em grande parte, estão a aprender em bicicletas de equilíbrio sem pedais, que já provaram acelerar em muito a evolução natural do seu equilíbrio e noção de velocidade.

Aí, colectivamente decidimos, com o apoio da indústria de uma forma geral, abdicar da máscara do conforto e controlo das rodinhas, e até certo ponto da segurança inicial que oferecem, para se apostar no desenvolvimento da técnica de forma a cimentar uma evolução mais rápida e sustentada.

No entanto, para nós, que somos pais, avós, adultos, continuamos curiosamente a insistir na procura e escolha das melhores “rodinhas” para a nossa mota.

PAREI DE ENSINAR TECH

Quando comecei a ensinar, nos saudosos tempos da TrailOut, a nossa frota de XT 600 não tinha uma única linha de código. Ensinar técnica era tudo, não por filosofia, mas porque não havia alternativa, nem na nossa frota, nem na maioria das motas dos nossos alunos.

Depois veio a vaga eletrónica. Mais ajudas, mais modos, mais botões. E eu comecei a ver-me obrigado a fazer trabalhos de casa antes de cada treino para perceber o que cada mota fazia e em que condições.

Quando tirei a minha certificação de instrutor na Alemanha numa escola na altura BMW, a experiência só reforçou o processo. Estudei sistemas, analisei diferenças, integrei tudo em exercícios para melhor ensinar. E durante uns anos essa abordagem parecia-me lógica: se o aluno comprou a mota X com o sistema Y, tinha de aprender a usá-lo, ou eu como instrutor, estava a falhar.

Até que comecei a ver um padrão no mínimo irritante: cada marca baptizava o mesmo sistema eletrónico com um nome diferente, ou proprietário como eles gostam de lhe chamar. Marketing puro, mas com impacto real.

Isto porque quando cada marca inventa um nome novo para o mesmo sistema, como utilizadores, deixamos de saber instintivamente o que é suposto esta ou aquela ajuda fazerem. Segurança real precisa de clareza, não de marketing. Imaginem se cada extintor tivesse um nome diferente dependendo da marca, e as classes de fogo em que actuem tivessem um spin de marketing, metade do mundo ardia antes que alguém entendesse o livro de instruções.

E isto tende a ser levado ao extremo.

Por exemplo, de uma forma geral é-nos oferecida a hipotese de escolher ‘níveis’ de potência, de low a high, ou de 1 a 3 ou 4. Uma precisão tão irrelevante como quando pedimos direções a alguém e nos dizem que ‘é já ali’.

É-nos oferecida a hipotese de modos off-road, enduro, rally ou pro, onde de uma forma ou de outros, ajudas se vão desligando ou mutando, e onde uma camada de confusão saída de uma jogada de Marketing oferece ‘simplicidade de engenharia’ como se fosse magia por um preço.

Mas onde está a definição da marca, ou do mercado em geral, sobre as diferenças claras entre tipos de off-road, criticas para o cliente final, aquele que têm de saber escolher o modo certo, poder fazer uma escolha informada?

Para pilotos experientes, este barulho é fácil de abafar. Ou se desliga tudo, ou se fazem testes para tentar descobrir o que cada coisa faz. Mas apelidar eletrónica de segurança e depois esperar que pilotos iniciados ou tecnicamente dúbios consigam decifrar decisões de numeculatúra feitas à porta fechada, é no mínimo contra producente.

Com tudo isto em mente, deixei de ensinar eletrónica específica em aulas generalistas. O que pode parecer contraintuitivo, uma vez que sou o primeiro a dizer que existe confusão e que a eletrónica tem valor. Afinal, como instrutor tenho o papel de ajudar a clarificar dúvidas.

E dúvidas tiro, mas no básico, com o foco nas técnicas que funcionam em qualquer mota, independente dos sistemas que possam ou não ter.

Isto porque foi ficando claro que quanto mais tempo eu gastava a ensinar modos e menus, menos tempo os meus alunos tinham para sentir a mota, e para evoluir. Não era uma abordagem errada, ou que os tornava piores, mas era uma que sem dúvida que os travava. Cortava-lhes a evolução que poderia ser muito maior se o foco fosse no controlo do corpo, não do ecrã.

Assim, aposto em formar pilotos capazes de depois, no seu tempo e ao seu ritmo, poderem ir descobrindo a eletrónica da sua própria mota, um passo de cada vez, como que num namoro que os vai aproximar ou afastar de certas escolhas.

Isto não quer dizer no entanto que a eletrónica moderna seja má ou deva andar sempre desligada. Para alguns objectivos pessoais é perfeita. Para outros é apenas útil às vezes. Para outros ainda é um entrave completo. O meu ponto não é abolir nada. O meu ponto é pedir coerência. Coerência de nomenclatura, e da linha de ensino que escolhemos para nós e para os nossos.

Se para as crianças aceitamos que o caminho certo é técnica pura em vez de artifícios, porque é que para nós insistimos em mais e mais máscaras?

Se as marcas vendem a técnica do piloto como a métrica final do desempenho do sistema ao desligar tudo ou quase tudo nos seus modos mais “agressivos", porque é que continuamos a pedir e a pagar caro por escolhas que no fim vão ser nossas?

Por isso deixo a pergunta: será que com o nosso medo do desconforto da aprendizagem pura perdemos o respeito pelo processo em si?


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