Pés na peseira, história ou evolução?

Pés na peseira, história ou evolução?

Esta é uma pergunta que gera muita conversa. Alguma com razão, alguma por diz-que-disse, e outra tanta por generalização vista pela lente da experiência pessoal, independentemente, no fim do dia o consenso é curto. Da minha parte, já escrevi vários artigos sobre o tema e dediquei parte do meu livro a uma análise cuidada. Por isso, peço desculpa se agora o detalhe deste pormenor técnico for curto, mas também não é o ponto chave do artigo. Ainda assim, há pontos que devem ser revistos para entendermos o significado da evolução de pequenos detalhes no nosso desporto.


Técnica não é velocidade

Comecemos pelo básico: pés nas peseiras, bem posicionados, têm um impacto direto no controlo da mota. Em pé, isso significa calcanhar caído, peseira na zona inicial dos dedos e, no mínimo, quando possível, a biqueira da bota encostada à mota. Esta posição não serve só para alinhar os joelhos e distribuir o peso do piloto durante impactos. É também o que permite, através da anca, um controlo eficaz da roda traseira e do equilíbrio lateral da mota, vulgo, “conduzir pelas peseiras”. Sentado, e desde que no local correto na mota – algo que  infelizmente não se aplica tanto quanto se pensa – o posicionamento dos pés continua a oferecer o mesmo tipo de vantagens.

Isto não é propriamente uma opinião. É biomecânica, é física, é distribuição de massas em movimento, é calculável e replicável. Assim, retirar o pé de uma peseira numa curva não é um movimento inócuo: quando é feito “só porque sim” é um erro, quando tem propósito, é técnica em movimento. Exemplos?

  • quando a peseira ameaça tocar no chão e há risco do pé ser arrancado (embora alguns pilotos de topo, em terreno mole, ainda assim o mantenham para reter controlo máximo da mota)
  • para fazer um dab, ou em português, recuperar de um erro
  • para forçar um pivot, que, por definição técnica, exige um ponto de rotação

 

No primeiro cenário, o mais delicado por ser o mais propenso ao erro instintivo, se o pé vai sair para evitar contacto, e sabemos que perder o apoio das duas pernas na mota promove perda de controlo da traseira, tirá-lo de qualquer maneira é então, e por definição, um erro. A forma correta é elevá-lo o mais possível, aninhado-o entre o plástico frontal e o guiador, com a biqueira virada para dentro. Assim preserva-se a pressão dos joelhos e das pernas dentro do possível e renova-se o controlo da roda de trás, ao mesmo tempo que o pé se afasta do perigo que o obrigou a sair da peseira em primeiro lugar.

Esta análise é objetiva e o seu resultado tecnicamente replicável. A aplicação pode variar dentro de alguns moldes, mas isso não altera a sua eficácia quando bem executada. Agora, o que muitas vezes vemos – falhas técnicas à parte – são erros de execução, o que é natural, ou escolhas incorretas do piloto, igualmente natural.

Outro ponto chave a ter em conta é que capacidade técnica e velocidade não são a mesma coisa. Diria o meu paizinho que é comparar merda e pastéis de nata. Um pode influenciar o outro, mas a ligação entre os dois não é bidirecional.

Assim, podemos ter pilotos tecnicamente inferiores mais rápidos, e outros tecnicamente brilhantes mais lentos. Isto porque a velocidade final de um atleta depende de vários fatores: compromisso, análise de risco, escolha de linhas... por exemplo, se alguém for sólido tecnicamente mas mais tímido com riscos, nunca vai manter um ritmo em distância tão elevado como alguém que dá o que pode, e não pode. Assim, um piloto rápido é sempre um misto de muitas variáveis, com técnica a ser somente uma delas.

Então porque é que a técnica importa?

Porque dá consistência, e consistência limita erros, o que traz longevidade e suavidade. Suavidade tende a traduzir-se em velocidade, longevidade em menos lesões e mais finais do dia atingidos. Isso ajuda a explicar porque vemos pilotos explosivos a brilhar mas poucos a manter-se no topo durante muitos anos com essa abordagem, enquanto outros, menos agressivos, que não sendo vencedores diretos mas regulares no top 5 ou top 10 ou mesmo 20, viram mobília – a dada altura é impensável falar do desporto sem falar neles. É possível ser-se mobília sem ser tecnicamente mais estabelecido? Claro. Mas em análise temos de pensar mais nas médias do que nos extremos, porque apontar a uma improbabilidade estatística é meio caminho para o fracasso analítico. Assim aponta-se ao meio e ajusta-se às pontas se e quando for caso disso.


Do detalhe à norma

E isto já se vê no topo. Em Supercross, pés nas peseiras são hoje mais norma do que exceção – perde-se algum espetáculo de pó e pedra a voar, ganha-se em consistência de execução. No rally raid no entanto, ainda impera o pé de fora por hábito, mas os detalhes do corpo dos atletas já começam a apontar na mesma direção. Quando o detalhe se torna hábito sustentado pela eficácia, passa a ensinamento. Vale por isso a pena olhar para trás e ver como esta lógica se instalou ao longo das décadas no MX e SX, onde mais incentivo financeiro puxou a corda da evolução.

Nos anos 80 a norma era bruto e agressivo, faca nos dentes em bom português. Mas também foi aqui que surgiram as primeiras revoluções de forma. Pilotos como Bailey e O’Mara mostraram que estilo, postura em pé e forma de curvar podiam ser ensinados, não apenas copiados. Esta era marcou o tímido início das escolas e da ideia de que a técnica podia ser sistematizada.

Nos anos 90 e 2000 a mudança veio por outro meio. Ricky Carmichael não ficou conhecido pela técnica exímia, mas a agressividade e a cultura de treino físico extremo, desenvolvida com Aldon Baker, mudaram o desporto para sempre. Ele não reinventou postura, mas mudou o nível de exigência. James Stewart, por sua vez, trouxe um salto técnico novo com o scrub, uma manobra que deixou de ser truque isolado de um e passou a ser requisito de todos. Dois caminhos diferentes, ambos disruptivos e evolutivos a cimentarem uma nova era de ensino.

Na década de 2010, os centros de treino profissionalizados tomaram conta do desporto como o caminho de entrada para quem queria competir a sério. Deixou de se tratar apenas de ter talento ou um treinador pessoal: Roczen, Herlings e Prado chegaram de sistemas estruturados que trabalhavam técnica, físico e mental desde cedo. O que antes se aprendia a meio da carreira, agora vinha consolidado logo desde cedo.

E nos 2020, o fenómeno amadureceu e acelerou resultados. Exemplos como Jett Lawrence chegaram com técnica polida e maturidade pouco comum para a idade. Haiden Deegan, explosivo e cru, é o oposto estilístico, mas ambos refletem a mesma realidade: um sistema de ensino que entrega miúdos capazes de competir ao mais alto nível logo à chegada à competição de elite, mesmo que por razões diferentes. O nível médio disparou não porque todos tenham a mesma técnica, mas porque todos trazem já um pacote trabalhado de treino, experiência e intensidade, com bases técnicas sólidas à sua realidade. A estrutura de trabalho e técnica constrói a base, o instinto e o estilo pessoal dão-lhe a forma final.

No rally raid, a média de idades competitiva tende a ser mais alta do que em SX e MX e a profissionalização e difusão mediática ainda estão a amadurecer, não tendo atingido os níveis da AMA. A evolução formativa de bases tende a ser, por isso, mais lenta, mas não obrigatoriamente afastada do mesmo conceito. No passado, os grandes nomes do Dakar – de Peterhansel a Toby Price – vieram quase sempre de enduro e cross country, muitas vezes misturados com motocross, mas sem sistemas de ensino estruturados. Hoje, pilotos como Klein e Canet já aparecem como produtos de uma geração diferente: não porque são obrigatoriamente génios do desporto, mas porque cresceram num contexto onde o conhecimento do que é necessário nestes desportos é explícito, estudado, partilhado, ensinado e sistematizado desde cedo, seja por escolas de MX e SX, centros de treino especializados, ou instrutores privados. Isso dá-lhes uma consistência de detalhe que tendencialmente antes só se via atingir mais tarde nas carreiras.

Isto não faz deles campeões do mundo automáticos, longe disso, como já disse, a velocidade requer vários pontos. Mas mete-os a dar cartas desde muito cedo, com anos pela frente para evoluir e aperfeiçoar. E é essa transferência que observamos, motocross e supercross a puxar o nível para cima e o rally a absorver parte desse avanço com as adaptações necessárias à modalidade, o que mostra como o fora de estrada continua a mover-se em bloco.

Felizmente, tanto as motos como os pilotos evoluem, e isso significa que os 2030, 2040 e por aí fora vão certamente trazer novas revoluções a seu próprio mérito. Agora, só poderemos aproveitar esse futuro, como pilotos, atletas, e espetadores, se aceitarmos o nosso passado, e o nosso presente.


Leave a comment

Please note, comments must be approved before they are published