O que cair significa

O que cair significa

Cair não só faz parte, é um processo vital de fazer fora de estrada.

É totalmente possível fazer uma vida inteira de estrada sem uma queda. E não só como uma improbabilidade estatística, é simplesmente um fator percentual claro e válido. Na terra, não.

Não interessa se somos atletas profissionais que rolam basicamente todos os dias ou aventureiros que têm a sorte de poder andar uma vez por mês. Ir ao chão faz parte. Basta ouvir qualquer comentário dos pilotos do Dakar no fim de uma etapa. É tão comum ouvir a malta das motas dizer que deu uma pequena queda aqui ou ali como é ouvir que tiveram dificuldades mecânicas ou de leitura de roadbook, por exemplo.

Assim somos obrigados a definir o que é cair, porque essa palavra é, em muitos casos, algo que assusta mais do que uma potencial queda em si. Isto porque a definição de cair é cruel, e a culpa recai sobre precisão linguística.

Vamos a rolar, paramos, metemos mal o pé no chão por distração e pimba, mota no chão. Por dicionário, tivemos uma queda.

Estamos no track, chegamos a uma parte lenta e técnica, vamos ali a uns 15 ou 20 km/h, lemos mal o terreno e a mota sai para o chão, e nós com ela. Por dicionário, também tivemos uma queda.

Vamos largados numa parte rápida do track. Sentimos a força do vento contra o tronco, fazemos o nosso melhor em termos de posição corporal e, com sucesso, a mota marca 80 km/h e progride com requinte. Mas o sol bateu-nos nos olhos e perdemos a posição daquele buraco que nos fez sair a voar. Por dicionário, também tivemos uma queda.

É debatível se, no último cenário, não tivemos um acidente em vez de uma queda, mas abrindo e fechando já a discussão semântica, o acidente não remove a queda, só acentua a gravidade. Assim, somos obrigados a aceitar sem grande discussão que cair faz parte de andar na terra. Isso, no entanto, não nos ajuda a sentir melhor com a situação e ainda menos a entender porque é que cair é um processo vital e importante.

A queda como professor

Para discutir o valor de cair, precisamos então de identificar que tipo de quedas contam.

Para isso, somos obrigados a deixar de lado a queda parado e a queda totalmente largado, e devemos usar somente o que sobra entre as duas como referência. E digo referência não porque as outras sejam menos relevantes, mas porque a queda em velocidade tende a acontecer menos em pilotos lúdicos do que as medianas, e a parado é menos importante para o ponto que quero fazer.

Quedas, de uma forma geral, se forem analisadas com uma boa autocrítica, vão sempre apontar para uma sequência de erros que foi feita. Mau posicionamento, má escolha de linhas, má escolha de velocidade, por exemplo. As opções são imensas e a sua sequência relativamente única. Essa autocrítica ensina muito. Ensina o quanto podemos ou não puxar um limite e o quanto ou não ainda temos por aprender nessa e noutras situações semelhantes.

Excusado dizer que, sem autocrítica, essa mesma análise vai terminar com uma clara necessidade de comprar pneus melhores, modificar suspensões, comprar uma mota nova ou simplesmente assumir que se teve azar. Independentemente, vai invariavelmente acabar sem qualquer tipo de culpabilização pessoal, porque aceitar que se cometeu um erro é algo digno de um pecado cardinal pelos dias que correm.

Quando essa análise existe, e é crítica e realista, aprendemos muito com quedas, e isso é importante.

Quando já não se cai há muito tempo

Por outro lado, quanto mais quedas temos, quanto mais treinamos e quanto mais evoluímos, as quedas - que nunca desaparecem - começam a ser em menor quantidade. Isso leva muitos pilotos, incluindo atletas, a volta e meia ficar com um nervoso na barriga e um pensamento na cabeça: não caio há demasiado tempo...

Eu diria que isso é bom, porque tecnicamente estamos sólidos e porque temos noção de que estamos temporariamente a viver numa improbabilidade estatística do desporto, fazer terra sem cair. Mas esse estado também tem implicações.

Implica que, se estamos a analisar o que fazemos e não encontramos erros de maior, a nossa capacidade de nos mantermos com as rodas no chão confirma a nossa leitura, e a estatística diz que a próxima queda vai garantidamente aparecer - temos uma bomba-relógio nas mãos.

Para muitos, essa sensação é manejável. Para outros, é assustadora. Qualquer uma das opções é válida e tem mais a ver com gestão emocional pessoal do que outra coisa. Então o único problema aqui é aceitar o presente como uma constante invariável no futuro.

Isto porque viver conscientemente no limite da estatística mantém honestos aqueles que querem mais controlo sobre a sua mota. De forma subtil ou nem tanto, depende da gestão emocional, obriga-nos a rever o que fazemos e porque o fazemos, evita erros repetidos e mete a complacência de lado. De certa forma, a ausência da queda com noção é vital porque ensina tanto quanto uma queda analisada em si.

Depois há o dia em que essa queda eventualmente chega. Por um lado, o relaxe do peso que saiu dos ombros, está conquistado. Por outro, um barómetro de como nos sentimos física e mentalmente fica em aberto.

Esta queda custou-me mais do que custaria há uns anos? Assustou-me mais? A potencial lesão que resultou demorou mais ou menos a resolver?

Se para atletas profissionais estas e outras respostas podem ditar a continuidade ou o final de uma carreira, para nós, comuns mortais e simples amantes de terra, pode ditar a necessidade de um curso de refrescamento, uma mota mais fácil ou uma imposição de limites diferentes ao nosso ritmo de andamento e escolha de terrenos.

Assim, no fim, cair nunca deve ser usado como medidor de capacidade de condução ou impulsionador de ego, mas sim como um método de ensino tão válido como todos aqueles que podemos aprender a rolar.


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