O que é que aprendo na formação?

O que é que aprendo na formação?

Ao fim destes anos como profissional e formador, noto que muita gente ainda acha que vem para uma formação de terra para aprender a andar de mota. E isso, de alguma forma, é um erro.

É um erro comum, até certo ponto válido, porque é uma observação imediata: “eu sei andar de mota, que raio é que vou fazer a pagar para me ensinarem o que já sei?”. Mas esse raciocínio tende a cair por terra assim que olhamos mais fundo.

E já sei: poucos vão olhar mais fundo. Prova disso serão os comentários de “grande demais, vou esperar pelo filme”, ou as reações viscerais de quem nem leu até aqui, ou, se leu, não se reviu e, como tal, está contra. Até a própria dispersão deste artigo - que não tem um título divisório nem uma frase viral a abrir - vai mostrar exatamente o erro de que quero falar hoje: o de ver, sem notar.

Claro que o trabalho de um instrutor - dos que trabalham para merecer o título - passa por ensinar técnicas de condução. A pilotos menos experientes - ou com demasiada experiência repetitiva - até a ensinar a conduzir do zero. Mas o verdadeiro trabalho pelo qual nos pagam é outro.

Existem várias formas de abordar este trabalho. Eu agarro-me ao entendimento profundo da técnica, ao uso de exercícios de respiração, de foco controlado, de eliminação de barulho de fundo e distrações. Uso neurociência, psicologia, sociologia e, sobretudo, bom senso. Tudo para apaziguar a alma de quem treina comigo, porque, no fim do dia, é para isso que - mesmo que inadvertidamente - me pagam.

Os céticos até têm razão numa coisa: quem nos procura já sabe conduzir. É inegável, nem que seja da sua forma mais básica. A prova? Os alunos chegam ao treino de mota. Por isso, sim, temos técnicas e abordagens novas para lhes passar, mas o nosso trabalho é mais holístico.

Travões invisíveis

É ler o aluno, perceber os bloqueios mentais que o impedem de aplicar o que já sabe num regime diferente, neste caso em cima de terra. O nosso trabalho é destravar medos que o próprio aluno nem percebe que tem, e que o prendem antes de o libertar para aprender a técnica que lhe vai dar o relaxe que tão desesperadamente procura. É soltar o travão que ele próprio, inconscientemente, puxa.

Isto é claro em regime de aula técnica, onde o instrutor consegue ver cada detalhe. Já em regime de “treino rolante”, onde se acompanham grupos sem tanta visibilidade de detalhe, é bem mais difícil, ao ponto de ser impossível em algumas situações.

Entre os alunos, há perfis opostos. Uns são afoitos, dados à descoberta. Muitas vezes vêm de negócios próprios, do desporto competitivo, de atividades de risco como desportos de combate, radicais ou até das forças militares. Gente habituada a calcular riscos mas que, quando decide ir, vai de cabeça, vai com tudo. Nota-se logo: o tronco colado ao punho, a cabeça a mostrar intenção física de acelerar. São alunos fáceis para ensinar técnicas novas, mas tendem a exigir travão: afinal, comem dificuldades sem saber parar.

Do outro lado, o reverso da medalha: os mais tímidos, reservados, cuidadosos com o perigo - eu próprio encaixo-me naturalmente neste grupo. Em aula, vê-se logo a diferença: costas a enrolar, cabeça a fugir, braços esticados a tentar afastar a mota do corpo. Um conflito interno entre a vontade e o imaginário do que se quer no futuro, e o subconsciente que batalha por cada segundo de segurança presente. Cabe ao instrutor perceber, analisar e encontrar o método certo para desbloquear estes travões.


Muito para lá da técnica

São alunos que dão mais trabalho, sem dúvida. Mas dão também um retorno maior, tanto para eles como para nós, instrutores. Fazer parte da jornada de quem chega com medo e sai confiante cria uma ligação que fica, e ferramentas para o aluno que vão muito para além do treino. Afinal, quantos e quantos dizem que fazer terra - e andar de mota como um todo - é terapêutico?

É verdade: soa sentimental e até metafísico. Para os “durões”, isto é encher chouriços, afinal, motas querem é gás e o ocasional osso partido. Mas a realidade é esta: o instrutor que vale o seu título não ensina só o que “todos sabem”. Antes, ajuda a criar as condições para que cada aluno seja o melhor que consegue ser em cima de uma mota.

Formação de qualidade não é só currículo, nem só novas técnicas. É ajudar cada um a abrir as portas que lhe permitem seguir o seu caminho.

Ver pela rama e analisar a fundo não são a mesma coisa. O trabalho de um instrutor é ensinar-te a diferença, e dar-te as ferramentas para saberes gerir os teus travões internos.


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