100.000kms de nada

100.000kms de nada

Há uma ideia que continua a circular por aí como se fosse verdade absoluta: que mais quilómetros equivalem a mais experiência, mais domínio, mais estatuto. “Já fiz 100 mil quilómetros” - dizem alguns, com ar de quem carrega um troféu invisível. E eu não duvido dos números, ou do esforço que vêm com essas horas na sela. Mas isso, por si só, não me diz nada, e arrisco dizer, que não devia dizer a ninguém.

Isto porque 100k kms pode muitas vezes significar 100x o mesmo km.

Vamos ser objectivos. Se repetires o mesmo tipo de estrada, no mesmo estilo de condução - que em estrada, para muitos, tende a ser meio que passageiro da mota - com os mesmos erros e vícios, durante uma década ou mais, o que é que realmente aprendeste? Fizeste quilómetros, sim, indiscutível. Mas aprendeste? Ou somente repetiste?

 

Mais eletrónica, menos intenção

Estas perguntas, para mim, têm ainda mais peso a cada nova geração de motas "inteligentes". Sem dúvida que mais eletrónica promove mais segurança - pelo menos na estrada e em alguns registos de terra - mas também promove complacência, um dos erros basilares que a aviação se força a combater de forma a diminuir acidentes e incidentes.

É sabido que os aviões comerciais, neste momento, conseguem de uma forma geral descolar e aterrar sozinhos. Ainda assim, os pilotos não passam a carreira inteira a bater charuto. Aterragens manuais, horas e horas de simuladores, até voos em pequenas aeronaves. Tudo é válido para manter o "jeito de mão" e não perder o que realmente se quer: a capacidade de pilotar.

Com algumas motas hoje em dia - principalmente aquelas onde se tende a somar mais kms - a serem pouco mais do que aviões de duas rodas, é mesmo justo alinhar capacidade de pilotagem por kms percorridos? Ou será que essas afirmações são mais um inocente sinal de alarme do que um de glória?

Experiência: variedade vs. repetição

A experiência, para ser válida, em qualquer área, tem de ser acumulada com intenção, com variedade, e idealmente com correção. Repetir não chega, isto porque se o input não muda, o output também não muda. Repetir o mesmo erro não o transforma em algo acertado, apenas o cristaliza. Da mesma forma que repetir o mesmo bom movimento não o expande, apenas o cimenta.

A verdadeira aprendizagem vem da diversidade: asfalto e terra, piso seco e molhado, subidas técnicas e descidas escorregadias, motas leves e motas pesadas, estradas abertas e trilhos fechados... Cada situação nova exige que te adaptes, que penses, que pesquises e procures ajuda se for o caso, cada situação nova exige que te ajustes. E é nesse processo que evoluis.

Há quem faça um milhão de quilómetros, sempre no mesmo tipo de estrada ou percurso, sempre no mesmo ritmo, e acabe com um kit de ferramentas extremamente focado num ponto, e incrivelmente limitado fora desse contexto. E há quem faça dez mil quilómetros com variedade, curiosidade e foco, e desenvolva um controlo e entendimento muito mais completos.

Infelizmente, em regime de aula, esta é uma realidade a que assisto regularmente: alunos com muito mais tempo de mota do que eu, mas com dificuldades no controlo básico de embraiagem ou travões, por exemplo. Algo que, quando vamos analisar a fundo, faz sentido, quando os kms foram maioritariamente feitos em motas com quickshifts, divisão automática de travagem, e, na sua larga maioria, rolados em autoestrada ou no mesmo tipo de estradas nacionais ou cidade.

Relembro até o meu caso pessoal. Em tempos tive um sistema de embraiagem semi-automática na minha mota pessoal, sistema esse que tive de retirar por me estar a fazer perder a capacidade de ajuste fino de embraiagem. Não estou a apontar o dedo, estou a partilhar a dor.

No fim do dia...

Não estou com isso a dizer que quilómetros não contam. Contam, claro, mas principalmente quando vêm acompanhados de variedade e aprendizagem real. Sem isso, o número, isolado, tende a valer pouco. Um cronómetro de pulso também te diz que estás a correr... mas não te diz se o estás a fazer bem.

Da mesma forma, não estou a dizer que essas motas mais tecnologicamente avançadas sejam erradas, más ou enganosas. Estou simplesmente a dizer que não se perde nada em, de vez em quando, ir para o "manual", e trabalhá-lo nas piores estradas que se conseguir encontrar, por exemplo. Ou ir fazer um treino avançado de estrada, ou um básico de fora de estrada. Isto porque as ajudas eletrónicas devem ser vistas, tal como o nome indica, como ajudas, não como muletas ao que realmente se sabe fazer.

No mundo das motas, continua a haver demasiada reverência ao “quilometrómetro”, como se fosse uma régua de qualidade. Não é. É apenas uma referência. Pode dizer muita coisa, mas nunca diz tudo.

Experiência não é só distância. Experiência é diversidade e evolução com intenção. E isso, meus amigos, mede-se de forma muito diferente.


1 comment

  • joseph

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