Rituais e superstições

Rituais e superstições

Será que existe superstições nas motas? Existem, claro. Mas muitas vezes, o que achamos serem superstições, são na realidade rituais, e essa distinção é crucial. Isto porque os rituais, estão longe de ser fé cega num poder superior, são ao invés formas práticas de colocar o nosso cérebro no modo certo.

Todos aceitamos a ideia de estar “na zona” - ou estado de flow - mas isso aplica-se a muito mais do que simplesmente desportistas de alto nível. Mas o que é flow? É um estado mental em que não estamos apenas a reagir. Temos a sensação de controlo absoluto do presente, de uma execução passo a passo com precisão. Não há ruído. Não há dúvida. Não há pressão. Só existe execução pura.

 

Flow não é magia, é treino com propósito

Agora, convém perceber: ninguém entra nesse estado a fazer algo pela primeira vez. Um principiante está demasiado ocupado a sobreviver, por isso, longe de dominar seja o que for. Mas isso não significa que seja preciso ser-se campeão do mundo numa qualquer disciplina para se começar a senti-lo. Se treinares um gesto simples vezes suficientes, e o fizeres bem, com atenção e propósito, vais desbloquear logo ali um nível ou dois. O cérebro aprende o que fazer e, quando for preciso, esse ficheiro tende a abrir-se sozinho. Não é o flow completo de um atleta de topo que encadeia movimentos complexos sem pensar, mas podemos considerá-lo o mini-flow de um principiante que executa dois ou três movimentos básicos no mesmo tipo de estado cerebral.

Agora importa também distinguir a linha que separa estar em flow e aquilo a que se chama de hiperfoco. O hiperfoco pode aparecer cedo, até em principiantes, e é uma concentração intensa num detalhe. Mas não é o mesmo que flow. No flow, existe fluidez, leitura global da situação e execução automática. No hiperfoco existe sobretudo bloqueio da atenção num ponto. A diferença é subtil, mas importante. E é na linha que distingue esses dois pontos que vivo o treino com propósito.

Costumamos falar abertamente de “memória muscular”, mas esse é um termo errado. Os músculos não têm memória nenhuma, quem a tem é o cérebro. Assim, o que existe é memória de procedimentos, criada pelo treino repetitivo de algo. É por isso que, quando introduzo um novo exercício em aula, insisto tanto com os meus alunos em: repetir, repetir, repetir. Devagar, com atenção, e principalmente com propósito. Isto antes de introduzirmos variações e dificuldades diferentes. É aprender a andar antes de correr. Assim construímos consistência consciente que, mais tarde, se transforma em execução inconsciente, ou por outras palavras, flow.

Rituais: a chave que tende a ativar o programa

Mas afinal onde entram os rituais no meio disto? Se o treino constrói o programa, o ritual é a chave que tende a o ativar. É o código que avisa o cérebro: “prepara-te, está na hora”.
Eu? Ponho sempre o capacete primeiro, seguido da luva esquerda, e depois a direita. Sempre. É o meu código pessoal para dizer ao cérebro: “Daqui a segundos estamos em cima de uma mota. Seja para ir buscar pão ou para ir largado num percurso de Baja, prepara-te, porque agora vamos trabalhar”.

Uns preferem ouvir música, respirar fundo, alongar, rezar, bater os calcanhares, gritar... Não interessa. Cada um tem o seu código, e isso é saudável. Rituais não são à prova de bala, mas nada na condução de motas é. Aprender a andar de mota só aumenta as nossas probabilidades de sucesso um passo de cada vez, e o nosso ritual pessoal é só mais um recurso na caixa de ferramentas que todos devíamos ter.

Convém então não confundir rituais com superstições. Um ritual cria o ambiente certo para que, quando surge stress, fadiga ou necessidade, o cérebro já tenha o procedimento certo pronto a sair. A superstição, por outro lado, pode ser limitadora: porque se acreditares que o teu sucesso depende de algo externo a ti, corres o risco de perder aquele instante de resposta que só tu podes dar - mesmo nas motas mais eletronicamente capazes.

Assim, o meu conselho, para quem leva a sério o que faz em cima da mota – seja no autódromo, no track, ou no meio do trânsito diário – é simples: treina consistentemente e conscientemente, até criares a base automática que te vai salvar quando precisares. E junto com isso, cria o teu próprio ritual. O fundamental não é qual é, mas sim que exista, e que seja sempre o mesmo, para que o teu cérebro aprenda a reconhecê-lo e alinhe tudo o que precisas para estar no ponto certo quando for preciso. Isto vai-te permitir ser consistente e gradualmente mais intuitivo nas tuas decisões, o que tende a tornar-te mais rápido, preciso, e acima de tudo, seguro.


1 comment

  • joseph

    this i agree, most pro riders whether in motogp, enduro, rally or motorcross will always talk about “Feel” which suggests that to perforn at a higher level the connection between our brain the controls and how the machine responds to controls input is very crucial to them and when the “Feel” is good everything flows…

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