Nem tudo o que brilha é formação

Nem tudo o que brilha é formação

Chama-se de tudo a tudo. Chama-lhe formação, treino, curso, ou passeio técnico — hoje, tudo é tudo, e nada é claro. No papel, parecem iguais. Na prática, são mundos à parte.

No mundo do off-road, onde já estamos - ou devíamos estar - muito habituados a truques de marketing, a palavra “instrução” (ou as suas variantes), ao ser usada de forma demasiado leviana, pode ser vista como simplesmente mais um. Isto porque é um daqueles termos apelativos que parecem dizer muito… mas raramente refletem o que realmente importa, com precisão.


Passeios formativos

Um passeio guiado com dois ou três conselhos pelo caminho, não é formação. É um passeio. Pode ser divertido, pode até ter bastantes momentos educativos, e há quem leve muito valor disso, mas não é pensado, estruturado ou desenhado para ensinar no sentido mais lato da palavra. A maioria sai com boas memórias, dificuldades técnicas muitas vezes diferentes do que costuma encontrar, contactos de malta que procura companhia para passeios e aventuras, mas não necessariamente com mais ferramentas técnicas solidificadas. E isso é perfeito, desde que seja claramente descrito e entendido.


Instrução evolutiva

Já a formação no sentido de instrução, é outra história. Grupos pequenos. Atenção constante. Feedback real. Exercícios repetidos até à consistência ou exaustão.

Diagnóstico técnico. E, acima de tudo, um currículo estruturado com objetivos definidos: “vais aprender isto, desta forma, e com esta progressão.”

O preço, tende a acompanhar as diferenças. E não, não é só pela exclusividade ou pelo tempo do formador. É porque o serviço oferecido é inerentemente diferente. Um tem outra profundidade, outro nível de exigência e um foco que não existe em experiências mais recreativas. Quem paga por instrução, paga para evoluir, não para se entreter.


Níveis de diferenciação

Isso levanta a questão dos níveis que normalmente acompanham a informação de passeios a aulas. “Iniciado”, “intermédio”, “avançado”, "nível 1, 2 ou 3"... palavras bonitas que afagam o ego de qualquer um, mas que são relativamente vagas de conteúdo. Sem critérios objetivos por trás com que todos concordemos e possamos usar para autoavaliação, estas etiquetas valem o que valerem os olhos de quem as aplica, e de quem as lê. E isso tende a levar muitos aventureiros ao sítio errado: ou porque estão num ambiente demasiado exigente, ou num onde não aprendem nada de novo. O problema não é de quem se inscreve, ou, na realidade, de quem faz a oferta. O problema é da falta de clareza que se tende a não exigir, de parte a parte.

Por isso, antes de te inscreveres num curso, treino, ou passeio formativo - seja ele qual for - faz perguntas, estás no teu direito. Pergunta o que vais aprender. Pergunta como é a real estrutura e o objetivo do dia ou dos dias. Pergunta como é que o formador consegue ajustar os exercícios a pilotos de diferentes níveis. Pergunta ao formador se vais andar em percurso contínuo ou se vais repetir o mesmo obstáculo até o corpo deixar de errar, ou deixar de mexer.


Diferentes formadores

E falando em formadores, outro ponto a ter em conta é o hábito de julgar o valor de qualquer atividade pelo currículo aventureiro ou competitivo do formador a título individual ou pelo nome de batismo da escola, já que, em algumas, pela dimensão, a probabilidade é de nem sequer termos o dito piloto como formador. Aliás, os melhores treinadores do mundo, em vários desportos, raramente foram os melhores atletas. Aldon Baker, por exemplo, nunca correu profissionalmente em motocross ou supercross, nem nunca teve nenhuma menção honrosa em duas rodas a nível pessoal. No entanto, foi o treinador de alguns dos maiores nomes da história, como Ricky Carmichael, Ryan Villopoto e James Stewart, e ainda hoje gere um dos melhores programas de treinos em duas rodas do planeta. Saber ensinar é uma competência à parte. Um piloto deve saber fazer. Um instrutor deve saber fazer-te saber fazer. Alguns pilotos dominam as duas artes, mas é importante manter em mente que não são mutuamente exclusivas.

Agora seria justo dizer que o Aldon é um "preparador físico e mental" e que não se especializa em técnica - apesar de também a trabalhar. O texto até aqui não descreve os treinadores pelo seu tipo, e essa omissão é real. Mas é precisamente esse o objetivo: levantar a pergunta sobre o que se vai aprender ou fazer, porque há muitas áreas diferentes que podem ser trabalhadas numa formação. Por exemplo, eu apresento-me sempre como instrutor de técnica, porque é o meu foco. Outros terão especializações diferentes, como o Aldon.
E chamo a atenção a isto porque? Porque infelizmente ainda existe muito a ideia de que é sempre preciso saber demonstrar para ensinar - principalmente para passar confiança - algo que eu discordo totalmente, porque existem várias formas de trabalhar a confiança de um formando. Sem dúvida que a demonstração é um excelente recurso, mas está longe de ser o único.
A ideia de que, se não se sabe fazer, não se pode ensinar, tem limitações sérias. Isso implicaria que prodígios, por exemplo, ficariam estagnados a certa altura da carreira, porque a probabilidade de encontrarem um treinador tão ou mais prodigioso é curta. O mesmo se aplica a atletas de alto rendimento. A esmagadora maioria não tem alguém "melhor do que eles" a executar. Ainda assim, têm treinadores.
Cabe ao treinador ou instrutor saber usar o que tem: às vezes é demonstração, outras vezes é correção verbal, decomposição, comparação, uso de analogias, feedback sensorial, etc. Bons treinadores são multifacetados, não lineares e limitados.
Isso leva-nos a outro ponto importante: equipas multidisciplinares, com um instrutor principal a coordenar - o que não limita o crescimento do próprio treinador: eu não comecei como treinador de técnica, por exemplo. Hoje, trabalho com treinadores internacionais que dominam áreas que eu não domino, ou têm abordagens distintas nas áreas que eu conheço, porque dominar algo não significa ter a totalidade desse conhecimento. Daí termos exemplos como Jorge Jesus ou José Mourinho, jogadores medianos, mas treinadores extraordinários com o devido reconhecimento. Ou ainda Bill Belichick, que nunca jogou futebol americano profissionalmente, e é considerado o melhor treinador da história da modalidade.
A demonstração é válida, muito válida, principalmente quando se chega a uma modalidade e é preciso ver para entender. Mas não é, nem de perto, nem de longe, o pico do ensino.


Resumindo:

  • Podemos ver um passeio formativo guiado como uma visita de estudo. Fica a experiência, e para alguns, informação muito válida que se pode levar para casa.
  • Podemos ver um treino generalista como uma aula em grupo num normal dia de escola. Alguns tiram muito, outros vivem bem na fila de trás a mandar bitaites, pois no fim, o caos de grandes grupos para um só formador, permite o que permite.
  • Podemos ver instrução focada em evolução como um tutor só para ti ou muito pequenos grupos, ou até mesmo para grupos maiores mas com múltiplos formadores, reduzindo efetivamente a razão formandos/formador. Esta abordagem vai-te corrigir ao detalhe, fazer-te repetir o que precisas, e tende a não te deixar sair sem levares pelo menos algumas técnicas consolidadas contigo.
  • Dentro dos instrutores, tens vários tipos com várias especializações diferentes.

Nenhuma abordagem é melhor por definição. Mas são todas diferentes. E deviam ser apresentadas como tal, por uma questão de clareza e benefício de todos. Porque quando se vende tudo como “formação” e “treinos", e não se diferência quem vai ensinar o que e de que maneira, quem quer aprender sai enganado, e quem só se quer divertir arrisca levar com exercícios ou teoria que não pediu.

E se tudo isto te soa confuso, é porque é mesmo. Os nomes mudam, os formatos variam, e nem sempre quem compra sabe o que está a comprar. Este texto não é para julgar quem oferece — é para ajudar quem procura.

Por isso lembra-te, no fim do dia, a escolha é tua, e só te cabe a ti tentar que seja uma escolha informada.

Leave a comment

Please note, comments must be approved before they are published