Mitos das motas - Precisas de dois pés ao chão?

Mitos das motas - Precisas de dois pés ao chão?

Há mitos que não morrem, e este é dos que me fala ao coração: “Só consegues estar seguro numa mota se, sentado, chegares bem com os dois pés ao chão.”
Quantas vezes já ouviste isto dito com a mesma certeza com que se fala da lei da gravidade?

Infelizmente, é falso.
Mais do que falso, é triste.
E pior ainda: pode ser perigoso.

 

O peso do mito que assusta mais do que a realidade

É falso porque limita quem já anda e não investe em aprender mais.
É triste porque assusta quem ainda nem começou e se sente excluído por sentir mais a gravidade do que outros. Quantos já ficaram a olhar para uma ficha técnica, viram “altura do assento: 880 mm” e desistiram logo, assumindo que nunca seria possível aquela mota ser uma opção?
E é perigoso porque dá uma sensação de segurança exagerada.

E as marcas - que deviam querer aumentar vendas - ajudam a alimentar esta ilusão. Dão-nos sempre a altura do banco como se fosse dogma. Mas e a largura? É como ver o tamanho da cintura e ignorar o comprimento da perna. Afinal, a mesma medida entrepernas não é igual com pernas fechadas ou abertas. A largura do banco conta, muito! Quantos se sentem confortáveis numa enduro alta e sofrem numa adventure mais baixa? Não é por acaso, nem tem nada a ver com o peso da mota. Mas essa coisa da informação realmente útil tende a perder-se em reuniões de marketing.

E nós, motociclistas, também não ajudamos. Quantos regulam a suspensão para o seu peso? Poucos. As motas saem de fábrica para o “piloto médio”. Mas ninguém é médio, e as marcas não nos dizem quem é o modelo de referência. O resultado é simples: quem pesa menos que a referência fica com a mota mais alta, quem pesa mais fica com a mota mais baixa. Ajustar a suspensão não é luxo de competição, é uma afinação básica que devia ser feita no stand no dia da compra. Tal como ajustar comandos e guiador. Afinal, num carro regulamos imediatamente o banco, espelhos e volante; numa mota, aceitamos um aperto de mão, a chave, e um “boas curvas”.

Depois há a técnica, ou a falta dela. Ensinar alguém a equilibrar-se com um pé devia ser das primeiras lições. Mas raramente é. A maioria aprende a meter mudanças e a travar, mas não a trabalhar equilíbrio estático ou a mexer o corpo no banco. O banco é tratado como uma baquet com cola: senta-te, encaixa, e não te mexas mais. Como se nos mexermos nos fizesse perder segurança. É aí que o mito cresce: regado por falta de confiança e treino, toda a gente assume que os dois pés no chão é o mínimo.

 

Um pé firme chega onde dois a tremer não chegam

A realidade, por outro lado, é simples: três pontos fazem um plano, ou assim o diz a geometria básica. Duas rodas e um pé firme não só bastam, como são mais estáveis do que duas rodas e dois pés a medo. Digo mais: em formação comigo, mesmo alunos que chegam ao chão com os dois pés bem assentes são obrigados a aprender a usar só um. Porquê? Porque é melhor em todos os aspetos da condução, muito para lá da estabilidade parado.

E rebaixar motas? Pode ser solução, desde que feito como deve ser. Os mínimos olímpicos não são altos: basta não cortar molas à bruta, nem mudar links e geometria a eito. Porque sim, rebaixar resolve o “problema” de chegar melhor ao chão - que recordo, não tem de ser obrigatoriamente um problema - mas mal feito, pode estragar comportamento em curva, limitar segurança e mexer em demasia na dinâmica da mota. É o típico remendo barato que resolve uma coisa e estraga quatro. Agora, quando é bem feito, o compromisso em altura ao solo e curso de suspensão é pequeno, quase impercetível para a maioria, mesmo em fora de estrada onde curso e altura ao solo são reis.

Falo por experiência: sou instrutor de fora-de-estrada, gosto de motas altas e de alto só tenho os sonhos e ambições que me sobraram da juventude. Já deixei cair motas por ser pequeno mais vezes do que me lembro - um buraco mal medido, vento à revelia, ou um pé que simplesmente não chegou. Nada de grave, no máximo o ego magoado e um plástico riscado de vez em quando. E ainda assim mantenho: altura e quantidade de pés no chão não decidem segurança estática. Um pé firme basta, aliás, às vezes quase sobra! Rebaixar pode ajudar, se for feito bem, sem dúvida. Mas no fim, cair faz parte, e não são os dois pés no chão ou uma mota bem rebaixada que mudam isso.

O mito dos dois pés dá conforto ao desconhecimento. Mas a mota não quer conforto. Quer ligação, confiança, domínio. E isso não nasce de dois pés no chão: nasce de um pé bem assente e de um piloto que sabe o que está a fazer.


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