A zona perigosa

A zona perigosa

É inverno, os tracks estão cheios de água, desde pequenas poças a grandes passagens. E se com o Outono vêm as folhas a cair e com a Primavera os passarinhos a chilrear, com este cenário chegam aqueles que parecem ter galochas em vez de pneus.

Sim, é super divertido passar dentro de água, principalmente de punho trancado. Mas isso não esconde os perigos dessa abordagem, e hoje é deles que quero falar.

90% de sucesso

Sou instrutor profissional desde 2012, e isso significa que conto com uns bons milhares de quilómetros de terra feitos. Com isso em mente, ao longo desses anos fui encontrando padrões que, discutidos com outros instrutores e guias nacionais e internacionais, começaram a desenhar diferentes tipos de piloto fora de estrada - com a nota que é sempre possível ser-se um misto de vários.

Temos os atletas, que correm competitivamente e vivem obrigados a um nível de agressividade e faca nos dentes muito específico. Como essa realidade não pertence ao mundo lúdico e nunca deve ser transposta para o campo aberto, deixamo-los de fora desta análise.

Temos também o cauteloso, onde tendo a inserir-me mais vezes do que gostaria, seja por defeito profissional e académico, seja porque considero já ter o meu bingo de lesões completo. Por definição, este tipo de piloto tende a meter-se pouco em problemas de maior e, por isso, também fica de fora da lista dos potenciais problemáticos.

Sobram então os outros dois perfis: o hooligan e o inocente - convém dizer que nenhum destes termos traz conotações depreciativas agregadas.

Isto porque ser hooligan no mundo das motas de terra é compreensível. Afinal, são em média demasiados cavalos metidos em pacotes relativamente pequenos para a potência que oferecem, mesmo quando falamos de motas acima dos 1000 cc, levantar pó e andar de lado é divertido, e tudo isso e mais está à distância de um simples punho meio enrolado.

Os inocentes, por sua vez, não têm culpa inerente. São simplesmente inocentes em relação aos riscos que podem ou não estar a correr, e como tal igualmente desculpáveis de certas atitudes.

Dito isso, diz a sabedoria profissional, ou pelo menos a minha e a daqueles com quem debato estes assuntos, que em média 90% das atitudes, ou se preferirem das manobras destes pilotos, têm sucesso. Podem não ser facilmente replicáveis, podem não ser bonitas, podem até nem ser manobras e ser mais exercícios de sobrevivência, mas de uma maneira ou de outra, tendem a ter um final feliz. No fim do dia, e quando o objectivo é chegar inteiro a casa, isso é o que importa para a maioria.

O problema são então os 10% que sobram desta tarte. Esta fatia oferece uma janela de risco demasiado grande para depender somente da sorte, mas uma que muitas vezes é ignorada porque a repetição de sucesso cria uma falsa sensação de garantias futuras. Entender este risco é crucial se queremos modificar as reais probabilidades da nossa segurança activa.

Assim, se entendemos que passar de gás numa poça ou travessia de água é pouco mais do que uma roleta russa com uma percentagem de sucesso simpática, temos então de perceber como deixar de dar tiros no escuro e como nos aproximarmos de decisões mais seguras e intencionais.

A parte fácil

Vou focar-me numa poça de 5 a 10 metros de comprimento, de águas turvas e paradas, inevitável porque ocupa todo o track. Digo inevitável porque quando é possível passar ao lado de água, isso é garantia de 100% de sucesso. Algo que deve obviamente ser feito quanto possível, mas que tiraria o objectivo pedagógico deste artigo. Assim, a abordagem que vamos debater é válida para qualquer travessia de água, desde uma poça do tamanho da roda, até à travessia de um rio.

Vamos então definir três momentos distintos nesta manobra: a entrada, a água em si e a saída.

A entrada é o ponto mais seguro da manobra, quer em conceito quer numa análise dos pilotos típicos. Essa afirmação é real porque mesmo quem vive distante da noção de perigo tende a preparar-se minimamente para a água. Seja por aplicar o típico “em caso de dúvida acelera”, por ajustar a posição de condução, ou simplesmente por se preparar para um possível embate mais agressivo com a água.

Agora, quem quer melhorar drasticamente a probabilidade de não cair, abranda previamente, e faz uma entrada na água com cuidado, calma e velocidade controlada. Definimos que a água é turva, e como tal não sabemos a sua profundidade, o grau de agressividade da aresta de entrada, o piso no fundo ou se há perigos extra como pedras ou troncos escondidos.

Com uma entrada contida, damos rapidamente por nós com os dois pneus na água. Aqui, seja com dois centímetros ou meio metro de água, conseguimos facilmente perceber o tipo de piso que temos para trabalhar. Se uma análise prévia do local nos dá pistas sobre possíveis perigos - sem árvores por perto ramos caídos são menos prováveis, por exemplo - o feedback da moto agora em modo submarino clarifica o resto.

O objectivo neste momento é simples: acelerador controlado e constante, e uma boa posição corporal preparada para qualquer imprevisto. Quanto mais profunda a água, mais esta abordagem deve ser seguida religiosamente. O objectivo é manter momento, não ganhar velocidade.

Entrar de gás numa poça mais funda do que antecipámos torna a gestão de momento impossível. Afinal, a moto, ao bater na água, abranda obrigatoriamente, e esse abrandar destabiliza-nos. Em casos extremos, a moto bate, trava, e o piloto voa por cima do guiador. Recuperar de uma posição de desequilíbrio deste tipo é complicado. Mais complicado ainda é recuperar duma situação destas para uma posição de controlo real e não simplesmente para uma de melhor sobrevivência. Logo, é algo a evitar.

A saída

Chegando ao fim da água, a nossa roda da frente encontra a saída, e é aqui que encontramos o ponto mais perigoso de toda esta manobra. Mas se passamos tudo, e a roda da frente já saiu da água, porque é que a saída é tão perigosa, afinal já está meio feita?

Precisamente pela ilusão de que o pior já passou.

Ver a roda da frente fora da poça não significa que está no seco. O pneu está encharcado, a moto despeja água para o solo, e, assumindo que não estamos sozinhos no recanto mais escondido da Mongólia, outros já ali passaram, espalhando ainda mais água naquela zona. Assim, a linha onde a água termina visualmente não marca o início do piso seco, mas sim o início de uma zona de transição meio molhada.

Essa zona meio molhada é traiçoeira. O seco é seco. O fundo da poça é 100% molhado. A transição entre os dois é instável porque a sua tração é tudo menos consistente.

E tração inconsistente é exactamente onde mora o problema do pneu de trás. Assim que os nossos olhos veem a roda da frente a sair, a cabeça pede aceleração, confiante que “o pior já passou.” Mas não passou. O pneu de trás ou ainda está dentro da água ou já está na zona de transição, agora ainda mais molhada graças à água despejada pela frente, e pelo cárter. Acelerar aqui é meter binário precisamente onde há menos tração.

Se pensarem, quantas vezes vos aconteceu, ou a alguém que conhecem, fazerem uma travessia de água manhosa incrivelmente bem só para cair na saída? O mesmo cenário repete-se em lama, regos molhados e bancos de areia isolados - se bem que na areia o manhoso é a película de areia solta entre a areia funda e o piso seco. Voltando à água, os olhos aceitam que a moto saiu da poça, mas o cérebro esquece que ainda temos um metro e meio de moto atrás da roda da frente.

Assim a solução é simples. Depois de um trabalho excepcional de entrada e dentro da poça, quando virem a saída, respirem fundo e só depois acelerem tudo o que quiserem. O tempo da inspiração e expiração dá-vos os metros suficientes para que as rodas encontrem seco real e vos devolvam tração previsível.

É isso, é simples, não há necessidade de complicar.

Nas motas, nem tudo são técnicas contra intuitivas que demoram anos a dominar, ou passa pela necessidade de se ter a melhor moto e pneus do mundo. Muito passa por bom senso e por um entendimento básico do terreno onde fazemos o nosso desporto, em conjunto com algum controlo emocional. Tudo isto também se aprende em formação.

No fim do dia, tudo são escolhas que abrem ou fecham portas. Eu, na água, escolho sempre tentar manter a da ambulância bem fechada.


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