A Errada Fama dos 8s

A Errada Fama dos 8s

Há um culto estranho em volta dos 8s. Sim, aquela manobra que todos conhecemos, em que se descrevem dois círculos interligados, num padrão em forma de oito, geralmente entre cones ou pontos pré-determinados numa estrada ou parque de estacionamento. Quem passou por uma escola de condução — independentemente da era — conhece bem este teste que posso somente descrever como de perícia. Aparentemente, se conseguires fazer dois ou três 8s no sítio que te mandarem, és, aos olhos de um qualquer examinador de condução, um motociclista claramente capaz.

Ora… e se a resposta for um redondo não?

Sim, os 8s são úteis. Muito úteis. Nos treinos que dou, uso e abuso deles. Permitem trabalhar equilíbrio, distribuição de peso, olhar, controlo de embraiagem, controlo de travão frontal, leitura de curva e até antecipação. São uma ferramenta didática poderosa. E, em termos de exame de condução, são a única prova de perícia. E digo perícia porque, ao impedir o aluno de pôr o pé no chão, esta manobra de baixa velocidade e espaço limitado torna-se, por definição, perícia. O problema não está então na ferramenta, mas na forma como é usada, ou melhor, ensinada. Tal como usar um martelo para fatiar pão, qualquer boa ferramenta sem a explicação certa tende a ter um uso incorrecto.

Na maioria das escolas e exames, o 8 é uma dança sem música. Devia ser um movimento fluido e intencional, uma sinfonia, mas tende a ser reduzido a um ritual mecânico sem qualquer ritmo. Sem explicações profundas, sem adaptação caso a caso e sem contexto, este espetáculo de perícia forçada é onde o aluno sobrevive em vez de desenvolver. Força-se a cumprir em vez de controlar.

Um 8 sem técnica é pouco mais do que curvas a medo.

A maioria dos alunos aprende a fazer o 8 como se estivesse a aprender a trocar mudanças ou a fazer uma mudança de faixa num carro. Trava ali, liga o pisca, vira o pescoço para aqui, verifica o espelho, equilibra o corpo assim — para quem tem a sorte de sequer aprender esta parte — e não metas o pé no chão. Mas ninguém lhes ensina o como. Porque é que o olhar importa. Porque é que se usa embraiagem com acelerador, e de que forma. Porque é que o travão da frente ajuda, e o de trás pode ser impossível de usar. Porque é que em algumas motas é fácil, e noutras mais difícil.

Pior, o exercício tende a não ser adaptado à realidade do aluno no que diz respeito a tamanho e peso. Nem tão-pouco costuma haver uma demonstração do instrutor, ou uma execução repetitiva da mecânica pura do exercício pelo instruendo antes de se introduzirem os passos que moldam a legalidade e segurança da manobra em via pública. Isso significa que a avaliação progressiva tende a ser inexistente, pois deixa zero margem para o que interessa: progressão do controlo, intencionalidade e conforto de execução.

O que me irrita não é, portanto, o exercício, mas sim o desperdício. O 8 podia ser - e para mim é - dos melhores exercícios de sempre. Com os devidos ajustes, dá para ensinar quase tudo o que importa no controlo de uma mota a baixa velocidade. Mas, em vez disso, no esquema típico de aula de condução, espremem-no até à casca, e servem-te pouco mais do que uma fruta seca como se fosse sumo fresco.

É como dar um instrumento a alguém e ensiná-lo a arranhar meia música, sem nunca se falar de ritmo, harmonia, expressão, ou sequer sobre como segurar no instrumento para começar. Só interessa se carregaste mais ou menos nas teclas certas. É triste. É poucochinho. É uma caricatura do que podia ser o ensino da condução base.

E atenção, isto não é uma crítica gratuita aos instrutores de condução. É uma realidade que acho que quase todos aceitamos, porque, infelizmente, foi a que vivemos durante a nossa formação básica.

Em treinos de fundo, os 8s brilham.

E porque é que digo que não é critica gratuita? Porque para muitos instrutores e currículos, os 8s são fundamentais.

Nos treinos que dou na BN - tal como muitos outros instrutores a nível nacional e internacional fazem, seja em treinos avançados de estrada ou de fora de estrada - os 8s são vistos como um exercício basilar que requer atenção dedicada e tem um lugar claro no ensino de bases. E isso independentemente de seguirem o desenho típico do 8 ou de surgirem em variações como slaloms com inversão de marcha, por exemplo. Tudo o que obrigar a mudanças sucessivas de direção de curva com mais ou menos amplitude, serve o propósito.

Estes exercícios são explicados ao detalhe, demonstrados, e evolutivos passo a passo. Com ênfase claro na posição corporal necessária para que a mota possa efetivamente inclinar e curvar. Mas aqui o objetivo não é passar alunos. É ensinar a controlar a mota em posição de curva apertada. O aluno tem de aprender a perceber a curva. Tem de aprender a usar o olhar como ferramenta. Tem de aprender a modular o peso e gerir a tração. Tem de aprender que o 8 pode ser largo ou apertado, rápido ou lento, consoante a necessidade. Tem de aprender que é a base para mais tarde aprender um pivot, por exemplo.

Tem de aprender, sobretudo, que controlar a mota é mais do que sobreviver a um exercício. É perceber a lógica por trás dele. É tornar cada manobra numa decisão controlada, e não num reflexo condicionado.

Gostava que esta visão fosse aplicada na formação base. Mas, infelizmente - ou felizmente, aos olhos de alguns - não me cabe a decisão. Posso, no entanto, partilhar esta ideia: a de que devemos olhar para os 8s como algo fundamental. Afinal, é a única altura da formação base em que alguma perícia é realmente requerida, e eliminar ou denegrir este único ponto só vai fazer tudo ir de mal a pior.

E talvez isso diga tudo. Porque, no final, a culpa da sua “dificuldade” não é nossa como alunos, nem tão-pouco dos instrutores ou das escolas. É de um sistema que não precisa de mais do que ter condutores a saber sobreviver para os considerar aptos para conduzir e evoluir.


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